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quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Shark, Tubarão - A era dos games

Quem, como eu, que foi geração anos 70, não viu durante sua infância uma série de videogames que surgiria entre os anos 70 e 80? Durante esse período, o Brasil passou pela era dos games, como Odyssey, Atari(ambos criados entre 1972 e 1978, sendo que o Odyssey veio primeiro) e até mesmo o Intellevision(criado entre 1977 e 1979), que é a razão deste texto.

O Intellevision era da Mattel. Sim, isso mesmo. A mesma indústria da Barbie! Nos anos 70, esse tipo de coisa não era comum. Quando a Magnavox criou o Odyssey no início dos anos 70, onde a empresa passou a fazer parte da Philips em 1974, ninguém iria imaginar na época o quão longe o mercado dos chamados videogames iria.

O Intellevision, meu primeiro e único videogame na vida, tinha vários cartuchos de jogos à venda. Eu tinha o Triple Action(três jogos, batalha de tanques, batalha de aviões e corrida de carros), o Astrosmash(batalha de asteróides, que era o jogo mais tenso) e, finalmente, o “Shark! Shark! Tubarão! Tubarão!”, criado no início de 1983, fazendo agora 40 anos de sua criação. Este era um jogo do Intellivision, originalmente projetado por Don Daglow, e com design e programação adicionais de Ji-Wen Tsao, uma das primeiras mulheres programadoras de jogos na história dos videogames. O jogador é um peixe que deve comer peixes menores para ganhar pontos e vidas extras, evitando inimigos como peixes maiores, tubarões, águas-vivas, lagostas e caranguejos. Depois de comer uma certa quantidade de peixes, os peixes do jogador aumentam de tamanho, e podem comer uma seleção maior de peixes. No entanto, embora o peixe maior se torne um pouco mais rápido, ele é menos ágil que o peixe pequeno e tem mais dificuldade em evitar os inimigos. O tubarão possuía tamanho 7, as águas-vivas tamanho 6, mas o peixe do jogador alcançava, no máximo, tamanho 5. Então havia coisas que o peixe do jogador jamais poderia comer. As águas-vivas, por exemplo, deveria deixar para os tubarões darem conta.

O objetivo final do jogo(que parecia infinito, mas não era) era atingir 9.999.950 pontos ou matar 225 tubarões. Esta última alternativa não era muito boa, pois cada tubarão que morria, o próximo vinha mais veloz. Matava-se o tubarão mordendo a cauda dele um determinado número de vezes. Quanto maior o peixe do jogador, menos mordida precisava dar na cauda do Tubarão, para matá-lo. Eu alcancei 116.000 pontos em 1984. Na mesma época, o campeão brasileiro alcançou 108.000 pontos. Obviamente, ele fez isso jogando contra outro jogador, o que talvez lhe dê mais mérito.

Tubarão morrendo, após sucessivas mordidas do peixe em sua cauda

Por fim, devido ao meu estado de nervos, e por estar perdendo os meus estudos escolares, meu pai vendeu o videogame. Mas o meu nervosismo não foi por causa do jogo do Tubarão, mas sim por causa do Astrosmash, este sim um jogo infinito, que levava o jogador à loucura.

Hoje, cerca de 40 anos depois, vejo o quanto a nossa infância dos anos 70 e 80 era precária. Muitos sentem saudade, mas o mundo sempre foi ruim. Porém ao menos eu sempre sentirei saudade de um joguinho que fez parte da infância de muitos, embora o Intellevision era bem menos conhecido que Odyssey ou Atari. Entretanto, nenhum desses três se comparava às diversões que a garotada de hoje possui. O mundo nunca foi mais ou menos feliz. Era só um mundo com opções diferentes.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

A Origem dos Plantagenetas: Eleanor da Aquitânia

Neste ano, como faz 30 anos da morte da escritora inglesa Eleanor Alice Burford Hibbert(1906-1993), que usava vários pseudônimos, entre os quais Jean Plaidy, autora da famosa Saga dos Plantagenetas, uma saga de romances históricos em 14 volumes, que conta a história desta família inglesa, porém de origem francesa, até a ascensão dos Tudors, no final do século XV. E esta origem francesa começa com uma mulher que iria virar lenda dos dois lados do canal da Mancha: Eleanor da Aquitânia!

No início do ano de 1173, há 850 anos, uma revolta pairava no reino da Inglaterra. Uma mulher ferida em seu orgulho, agitava seus filhos contra o próprio marido, tentando depô-lo do trono. Seu nome era Eleanor da Aquitânia, e foi considerada a primeira mulher com ideias feministas na idade média. Era a nobre herdeira da província mais rica do continente europeu. E esta sua história é a prova do quão longe a vingança pode levar. A vida de Eleanor foi muito enriquecida, não apenas por sua vasta herança do Ducado da Aquitânia, que seu filho Ricardo I também herdaria, mas também por sua formidável força de personalidade, casamentos astutos e instinto implacável de buscar perspectivas para ela e seus filhos. Ela foi casada pela primeira vez com Luís VII, posteriormente se casaria com Henrique Anjou (mais tarde Henrique II), formando uma poderosa aliança de enorme riqueza e influência.

Em 1137 o pai de Eleanor morreu, e seu único irmão também morreu. Ela tinha apenas 15 anos, mas herdou uma incrível riqueza e poder normalmente não acessíveis às mulheres nesse período. Ela se casou com o rei Luís VII da França, fortalecendo muito a riqueza e a posição de seu marido com a riqueza da Aquitânia. Dez anos depois acompanhou seu marido Luís VII na 2ª Cruzada, de Constantinopla a Jerusalém, o que não foi um sucesso, assim como o seu casamento. Ela lhe deu apenas duas filhas, e isso levou à anulação do casamento. Suas filhas eram: Maria, condessa de Champagne, que casou-se mais tarde com Henrique I, conde de Champagne(irmão de Teobaldo V, conde de Blois); Alix, que casou-se com Teobaldo V, conde de Blois; e sua irmã Marie, que casou-se com o irmão de Teobaldo, Henrique.

Ela prontamente se casou com Henrique II, rei da Inglaterra e filho do conde D’Anjou, e juntos tiveram 8 filhos, dos quais 5 eram meninos importantes, dando a certeza para a sucessão vital para o rei. Mas esta não era uma família próxima e feliz desde o início. Haveria competição e luta interna não apenas entre seus filhos, mas também entre o rei e Eleanor como sua rainha. O poder de sua aliança e a união do Império Angevino com a Aquitânia foram pelo menos influentes em causar a divisão familiar, e as lutas internas que permeariam a linha Plantageneta. Seus filhos foram: Guilherme IX, conde de Poitiers, morreu na infância e, portanto, não chegou à fase adulta; Henrique, o Jovem Rei, casou-se com Margarida da França e não teve filhos.

A ascensão de Henrique II ao trono inglês marcou o alvorecer da era Plantageneta. De origem francesa, mas filho de uma princesa herdeira da Inglaterra, Henrique sequer sabia falar inglês. Acabou com o caráter feudal do exército inglês, onde os nobres foram dispensados do serviço militar. No lugar disso, cobrou um imposto dos nobres, que o fez ter capacidade de ter um exército real. Nomeou juízes por todo país, que já estava dividido em condados, onde um funcionário real, o Xerife, tinha autoridade sobre senhores, burgueses e camponeses.

Após o casamento de Eleanor da Aquitânia com Henrique II, houve aquilo que nós do século XXI chamaríamos de alienação parental. A rainha Eleanor já vinha do seu casamento com Luís VII da França, quando contraiu a nova união. Mas o jovem rei Henrique mantinha o hábito comum da maioria dos nobres da época, com várias amantes, entre as quais Rosamund Clifford(1140-1176), uma nobre inglesa considerada a mais bela de sua época. A rainha inglesa, que já tinha um espírito livre incomum da época, soube lidar com frieza no caso, concentrando-se em envenenar o nome de seu marido nos ouvidos de seus filhos. Dizem que a rainha deu à luz ao seu filho João no Palácio de Beaumount, em vez de no Palácio de Woodstock, porque Clifford morava em Woodstock. Eleanor preparou sua vingança com calma. Dizem que ela foi o 1° modelo de mulher feminista na idade média. Ela tinha seu filho predileto, Ricardo. E como o povo da Aquitânia não gostava de Henrique, desde cedo ela mandou Ricardo para lá, para o menino se habituar com as terras francesas. Os franceses não viam Eleanor com bons olhos, mas poderiam ver Ricardo. De fato, por causa dela, a Inglaterra passou a ser dona de metade da França. Os franceses ficaram chateados quando a rainha "encheu de galhos a cabeça do rei Luís VII" indo levar o seu corpo folgazão, assim como seu enorme ducado, para as mãos do rei Henrique II da Inglaterra.

Porém a vingança da rainha envolveria todos os seus filhos, com exceção de João. Mas principalmente Ricardo, que mais tarde viraria a maior lenda da idade média europeia: Rei Ricardo, Coração de Leão! Terceiro filho do casal, não tinha a maior pretensão de se tornar rei. Mas tinha uma vantagem: era o predileto da mãe. Em 1173 a rainha armou uma rebelião contra o rei. Nessa época, Henrique, o Jovem rei(filho mais velho de Henrique II, após a morte do pequeno Guilherme, ao nascer)tinha 18 anos e era elogiado por sua boa aparência e charme. Ele era casado há muito tempo com a filha de Luís VII da França, ex-marido de Eleonor. Henrique, o Jovem Rei, manteve uma grande e glamorosa comitiva, mas foi limitado pela falta de recursos: “ele tinha muitos cavaleiros, mas não tinha como dar recompensas e presentes aos cavaleiros”. O jovem Henrique estava, portanto, ansioso por assumir o controle de algumas de suas heranças ancestrais para governar por direito próprio. Seu pai cometeu o erro(que só viria a se tocar depois) de coroar seu sucessor ainda em vida. Isso ainda iria custar muito caro.

A causa prática imediata da rebelião foi a decisão de Henrique II de legar três castelos, que estavam dentro da herança do Jovem rei, ao seu filho mais novo, João, como parte dos preparativos para o casamento de João com a filha do Conde de Maurienne. Com isso, Henrique, o Jovem rei, foi encorajado a se rebelar por muitos aristocratas que viam lucro e ganho potenciais em uma transição de poder. Sua mãe, Eleanor, estava brigando com o marido e se juntou à causa, assim como muitos outros, chateados com o possível envolvimento de Henrique no assassinato do arcebispo Thomas Becket em 1170, que deixou Henrique alienado em toda a cristandade. A revolta durou dezoito meses, estendendo-se por uma grande área do sul da Escócia até a Bretanha. Pelo menos vinte castelos na Inglaterra foram registrados como demolidos por ordem do rei. Muitas cidades foram destruídas e muitas pessoas foram mortas. A culpa foi colocada nos conselheiros do jovem Henrique, os barões rebeldes, que manipularam os príncipes inexperientes e imprudentes em busca de seus próprios sonhos de ganho. William Marshal(mais tarde chamado de o melhor cavaleiro do mundo), que foi leal ao jovem Henrique durante a revolta, disse que "maldito seja o dia em que os traidores planejaram envolver o pai e o filho".

A rebelião destruiu a confiança de Henrique nos filhos, principalmente em Ricardo. Eleanor foi presa no castelo de Chinon, na França, e Ricardo fugiu para a França. João, o único a não participar da rebelião, se tornou favorito à sucessão. O príncipe Ricardo desenvolveu um forte vínculo com Felipe Augusto(1165-1223), futuro rei da França. Dizem que Ricardo era homossexual, e ele e Felipe eram amantes. Foi assim que o jovem Ricardo, apesar de inglês, foi morar na França. Mas Ricardo já havia tido uma educação francesa, e aprendeu a chamar a França de lar.

Castelo de Chinon, na França. Lugar em que ficou detida a rainha Eleanor.

Quando em 1188 o rei Henrique II tentou tomar a Aquitânia de Ricardo para dar a João, seu filho caçula, Ricardo se aliou a Felipe e formou uma nova aliança contra o pai. Mas desta vez a revolta teria êxito. Henrique, já velho e cansado, não teria muito mais forças para resistir a mais essa investida. Henrique, o jovem rei, já estava morto. E agora Ricardo era o mais e, portanto, sucessor do trono. Em regra, as coisas mudaram. Tendo morrido seu filho mais velho, Henrique II modificou as condições de sua sucessão: Ricardo se tornaria rei da Inglaterra, mas não teria poder até a morte de seu pai; Godofredo manteria a Bretanha, que obteve por casamento, e João, seu filho favorito, obteria o Ducado da Aquitânia. Ricardo, no entanto, recusou-se a abandonar o ducado ao qual se havia vinculado porque não desejava se tornar um rei subordinado da Inglaterra sem poder. Furioso, Henrique II ordenou que Geoffrey e João marchassem para o sul para retomar o ducado à força. A guerra foi curta e terminou com uma difícil reconciliação familiar em Westminster no final de 1184. Mas a partir de 1188 a coisa seria diferente. Após uma mediação do papa, numa conferência em La Ferté-Bernard, que parecia trazer a paz. Ricardo e Felipe atacaram Henrique II de surpresa, fazendo-o recuar. O velho rei chegou a ter uma hemorragia estomacal derivada de sua úlcera. Não viveria mais muito tempo.

Vitorioso, Ricardo exigiu do pai o famoso beijo da paz, que era o juramento feudal de um vassalo para o seu suserano. Henrique se recolheu triste em seu castelo. Seu filho Geofredo, de uma outra união, estava junto a ele. O velho rei pediu a lista dos nobres que o traíram, passando para o lado de Ricardo. Para sua surpresa, o nome de João encabeçava a lista. Não viveria muito tempo mais, movido pela tristeza, morrendo dia 6 de julho de 1189. Após isso, e também a sua vitória, a primeira coisa que Ricardo fez foi tirar sua mãe da prisão. Eleanor da Aquitânia tinha sido vitoriosa em ver seu filho predileto no trono.

Eleanor ainda viveria para ver Ricardo reinar, lutar nas cruzadas e morrer. O rei Ricardo lutaria na terceira cruzada tendo Felipe II como um aliado invejoso e sabotador. Além disso, enquanto estava no Oriente, seu irmão João começava um processo de tentar tomar o trono do irmão. É a lógica do sistema. Quem trai o pai, trai o irmão. Sabendo disso, Ricardo retorna à Europa. Mas seria feito prisioneiro pelo duque Leopoldo V da Áustria, com quem se desentendeu durante a cruzada. O duque exigiu um resgate de 150 mil marcos pelo resgate, que equivalia a dois anos de dividendos da coroa inglesa. Eleanor juntou o dinheiro para resgatar seu filho amado. Porém João, aliado a Felipe da França, ofereceu a mesma quantia para o duque mantê-lo preso. Não adiantou. Não conseguiram mantê-lo encarcerado. Ao voltar, levou apenas algumas semanas para retomar os castelos tomados por João. Anos depois, ao retornar da guerra contra Felipe na França, Ricardo morreria de uma flechada. Mais uma morte que Eleanor testemunharia.

Para a Inglaterra o Leão não deixou nada. Mas os ingleses entoaram canções de seu rei glorioso na Guerra dos Cem Anos contra os franceses. Uma guerra que teve como região dissidente a mesma que foi disputada por Ricardo, João e Felipe da França. Tanto que Ricardo chegou a construir um castelo que seria a maior fortaleza em solo europeu, porém hoje em ruínas: O Chateau Gaillard! Aquele que fez Felipe Augusto da França dizer:"Eu o tomarei, ainda que os muros sejam de ferro". Ao que Ricardo respondeu:"Eu o defenderei, ainda que os muros sejam de manteiga". O castelo seria herdado por João, que sucedeu Ricardo, após a morte deste último. A incompetência de João no trono inglês, que trouxe tristezas à sua mãe Eleanor, fez perder inúmeras coisas conquistadas por seu pai e o irmão, inclusive o Chateau Gaillard. Houve revoltas no reino. Entre as quais, a revolta dos barões ingleses, que teve como consequência a assinatura da Magna Carta em 1215. Uma carta que limitaria a autoridade dos reis ingleses, até chegar ao ponto que está hoje.

O reinado de João foi desastroso aos olhos de sua mãe. Além da revolta dos barões e da Carta Magna, provavelmente foi nessa época que apareceu um personagem lendário conhecido como Robin Hood. Eleanor não viveria muito para ver seu último filho morrer. Ela morreu em Poitiers aos 80 anos de idade, em 1º de abril de 1204, algumas semanas após a captura do Château Gaillard por Felipe Augusto da França. Ela está enterrada em Fontevraud onde, apesar dos saques e profanações revolucionárias de 1793, ainda podemos ver sua figura reclinada ao lado de seu marido, Henrique II Plantageneta.

Assim morreu a rainha que estava à frente de seu tempo. Aquela que usou os filhos como armas de vingança marital. A Inglaterra perdeu muitas de suas terras no continente e o Império angevino, forjado por Henrique II e Eleanor, entrou em colapso. A influência de Eleanor continuou a ser sentida, no entanto, através de fortes e independentes mulheres, como sua neta Branca de Castela. Seja como um modelo, seja por meio da poesia que inspirou, o impacto de Eleanor continuou durante muito tempo após sua morte.

O rei Henrique II, que morrera vários anos antes, morreu decepcionado. Suas aventuras com amantes lhe custaram caro. Existe uma história interessante sobre as amarguras do velho rei inglês(que na verdade era 10 anos mais jovem que a sua rainha). Na câmara do rei Henrique II no castelo de Winchester estava pintada com cenas alegóricas de sua vida. Uma delas era a pintura de uma águia e quatro aguietas. Três atacavam a águia, enquanto a quarta observava. Dizem que o rei comentou:"Essas aguietas são meus filhos, que irão me perseguir até minha morte. O último deles, meu filho caçula, só está esperando para me arrancar os olhos com o bico."

Referências Bibliográficas

1.TYERMAN, Christopher. A Guerra de Deus: Uma Nova História das Cruzadas(vol. 1). Rio de Janeiro: Imago, 2010.
2.GIASSETTI, Ricardo. Ricardo, o leão das batalhas. Coleção Grandes Guerras,Volume VIII. Aventura na História.Ed. Abril.2008. São Paulo.
3.DUARTE, Fernando. Em busca de Robin Hood. Revista Aventuras na História. Edição 82. Editora Abril. Maio, 2010. São Paulo.

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Batalha de Viena - O crepúsculo do domínio otomano

Cavaleiros Hussardos alados

Em tempos em que a Turquia, e o presidente Erdogan, busca supremacia até no continente europeu, parece oportuno falar daquilo que foi a última tentativa de invasão de um império islâmico na Europa: O Império Otomano! Uma dinastia turca surgida numa época em que muitos reinos asiáticos ascendiam e caíam, tudo por causa dos ataques mongóis desde o século XIII.

O império otomano, nascido no século XIV e se expandindo rapidamente, começou a adentrar o continente europeu ainda em meados do século XV. Desde o fim do século XIV que já havia Cruzadas defensivas dos países balcânicos contra os otomanos. Em 1408 nasceria a conhecida Ordem do Dragão, criada pelo imperador do Sacro Império Sigismundo de Luxemburgo. Ordem de cavalaria anti islâmica que tinha vários príncipes dos Bálcãs como membros, e até mesmo reis de Aragão, na península Ibérica. O objetivo era defender Constantinopla e até os reinos cristãos da Europa da maré otomana. Muitos príncipes europeus tinham codinomes derivados da ordem, como Constantino Dragases, o último imperador de Constantinopla, ou Vlad Draculea(conhecido por histórias de vampiros), por se tornarem defensores da cristandade.

Com a morte do sultão Maomé II, o conquistador de Constantinopla, em 1481, o império otomano já tinha conquistado a região dos Bálcãs. Tendo o sultão Selim I(1470-1520) dado um descanso para a Europa, pois se voltaria para a Ásia, o filho deste, Solimão, o magnífico(1494-1566), se voltaria para a Europa novamente. Com a Batalha de Mohács(1526), o reino da Hungria teve seu exército destroçado pelos otomanos, e o próprio rei Luís II morto no campo de batalha. Seu corpo nunca mais foi encontrado. Era o fim da independência da Hungria. E um nobre chamado João Szapolyai, aliado dos otomanos, seria o último rei do país.

Uma minoria de nobres reconheceu Fernando de Habsburgo, irmão de Carlos V do Sacro Império, como sucessor do trono, e depuseram João Szapolyai. Não queriam um aliado dos turcos como soberano da Hungria. João fugiu para a Polônia e pediu ajuda a Solimão para recuperar o trono. Em 1528 o sultão entrou triunfante em Budapeste para coroar seu vassalo. Um ano depois, o sultão trouxe um exército de 120 mil e cercou Viena. O fato comoveu todo continente europeu. A cidade recebeu ajuda de tropas espanholas e resistiu a vinte assaltos. Os otomanos voltariam em 1532, mas aí Carlos V resgataria a cidade. Seria preciso os otomanos esperarem 150 anos para o próximo cerco à Viena.

Em 1540, com a morte de João Szapolyai, Solimão avançou sobre a Hungria central e formou um governo. Encontrou resistência de Fernando Habsburgo na parte da Hungria imperial. Mas em 1571, Estêvão Bathory assumiu o trono polonês, se aproveitou da resistência anti Habsburgo na Hungria, aceitou a vassalagem otomana e reinou sobre uma parte do país, garantindo assim uma relativa independência da Hungria.

No século XVI era interessante notar que muitos preferiam ser vassalos dos turcos a serem submissos a um império católico. Era aquele ditado que muitos cristãos protestantes e ortodoxos diziam na época:"Preferimos o turbante do sultão ao chapéu do papa". Essa lógica vai fazer entender muitas coisas mais tarde. A Guerra dos Trinta Anos(1618-1648), entre católicos e protestantes, tendo inclusive a França católica lutando do lado protestante, traria consequentes raciocínios sobre "traição" entre vários cristãos. Principalmente sobre quem foi a pessoa responsável sobre a decisão da França lutar do lado das potências protestantes, como a Suécia. Foi o primeiro ministro da França, o cardeal Armand du Plessis de Richelieu. Retratado por Alexandre Dumas em "Os três mosqueteiros", foi um clérigo mais próximo do trono francês, do que do papa. Todo esse emaranhado de alianças improváveis serviu para mostrar o quanto o mundo mais vale a política, que a religião.

Durante o decorrer do século XVI, o mar mediterrâneo, e principalmente o Oceano Índico, viu chegar os ingleses em seus mares. Depois vieram os holandeses. Essas eram potências economicamente mais fortes, e politicamente mais implacáveis que Portugal. Por outro lado, o mundo otomano no século XVI era muito mais abrangente que o europeu. Os súditos do sultão somavam cerca de 14 milhões. A Espanha tinha 5 milhões, e a Inglaterra 2,5 milhões. Constantinopla, que na sua queda tinha 40 mil, aumentou 10 vezes mais. Porém, nessa época, o triunfo otomano foi pouco duradouro. Desafiado pelos Habsburgos na Europa, Moscóvia, além de guerras contra os Safávidas no Irã, as tropas otomanas iam se retirando pouco a pouco da Hungria, do Cáucaso e do Iraque. Na Batalha de Lepanto(1571) os otomanos enfrentaram a Liga formada pela Espanha, Veneza e Malta, sendo derrotados por João d'Áustria. A derrota sofrida pela armada otomana fez anular as conquistas de Solimão. No final do século XVII, na época da última tentativa de invasão à Viena, muitos avanços obtidos durante o reinado de Solimão haviam se perdido.

A captura da cidade de Viena sempre foi uma aspiração estratégica do Império Otomano, devido ao controle que a cidade tinha sobre o Danúbio e as rotas comerciais terrestres para a Alemanha e o Mediterrâneo Oriental. Durante os anos anteriores ao cerco, o Império Otomano, sob os auspícios do grão-vizir Kara Mustafa Pasha(1635-1683), empreendeu extensos preparativos logísticos, incluindo a reparação e estabelecimento de estradas e pontes que conduzem ao Sacro Império Romano e aos seus centros logísticos, bem como o encaminhamento de munições, canhões e outros recursos de todo o Império para estes centros e para os Balcãs. O Cerco de Szigetvár em 1566 bloqueou o avanço do Sultão Solimão, o Magnífico, em direção a Viena e interrompeu o avanço otomano em direção à cidade naquele ano. Viena não foi ameaçada novamente até 1683. Em 1679, a peste assolava a cidade.

Na frente política, o Império Otomano vinha fornecendo assistência militar aos húngaros e às minorias não católicas nas partes da Hungria ocupadas pelos Habsburgos. Lá, nos anos anteriores ao cerco, a agitação generalizada transformou-se em rebelião aberta contra a busca de Leopoldo I pelos princípios da Contra-Reforma e o seu desejo de suprimir o protestantismo. Em 1681, os protestantes e outras forças anti-Habsburgos, lideradas por Imre Thököly(1657-1705), foram reforçados com um contingente militar significativo dos otomanos, que reconheceram Thököly como rei da "Alta Hungria"(a parte oriental da atual Eslováquia, e partes do nordeste da Hungria, que ele havia anteriormente tomado à força dos Habsburgos). Este apoio incluía a promessa explícita do "Reino de Viena" aos húngaros se este caísse em mãos otomanas. No entanto, antes do cerco, existia um estado de paz há 20 anos entre o Sacro Império Romano e o Império Otomano como resultado da Paz de Vasvár.

O Rei da Polônia, João III Sobieski(1629-1696), o verdadeiro herói desta batalha, preparou uma expedição de socorro a Viena durante o verão de 1683, honrando as suas obrigações para com o tratado, e partiria de Cracóvia em 15 de agosto. Durante este período a maior parte da Polónia ficaria em grande parte indefesa e, aproveitando a situação, Imre Thököly da Alta Hungria, como estado vassalo otomano, tentaria uma invasão. Jan Kazimierz Sapieha, o Jovem, atrasou a marcha do exército lituano, fazendo campanha nas Terras Altas da Hungria, e chegou a Viena somente depois de ter sido substituído.

O principal exército otomano sitiou Viena em 14 de julho. No mesmo dia, Kara Mustafa enviou a tradicional exigência de que a cidade se rendesse ao Império Otomano. Ernst Rüdiger Graf von Starhemberg, líder dos restantes 15.000 soldados e 8.700 voluntários com 370 canhões, recusou-se a capitular. Apenas alguns dias antes, ele recebeu a notícia do massacre em Perchtoldsdorf, uma cidade ao sul de Viena, onde os cidadãos entregaram as chaves da cidade depois de terem tido uma escolha semelhante, mas foram mortos de qualquer maneira. Então não dava para cnfiar. E nesta batalha nem tudo saiu como esperado. Tropas da Valáquia e da Moldávia foram requisitadas pelos otomanos. Alguns vieram. Outros lutaram do lado dos imperiais e poloneses. E mesmo aqueles que lutaram do lado otomano, sabotaram os canhões. Colocaram balas de canhão leves, que poucos danos causariam nas muralhas de Viena. Parece que os ataques aos Bálcãs no século XV não haviam sido esquecidos. Por outro lado, Imre Thököly, como líder protestante, preferia ficar do lado islâmico, do que lado católico. Natural, para uma época moderna, em que a política secular valeria mais que a religião. O assalto otomano à Viena tinha sido coordenado em aliança com o rei francês Luís XIV. E, talvez mais da metade dos soldados que procuravam capturar a cidade eram cristãos. Haviam gregos, armênios, húngaros, búlgaros, romenos e sérvios. Todos lutando do mesmo lado que árabes, turcos, curdos e outros nas fileiras otomanas. O acadêmico britânico Ian Almond, em seu livro "Duas fés, uma bandeira: Quando muçulmanos e cristãos lutaram juntos nos campos de batalha da Europa", fala da complexa teia de relações de poder, alianças feudais, simpatias étnicas e ressentimentos históricos que moldaram boa parte da história européia. Histórias como de Frederico II Hohenstaufen, sacro imperador alemão no século XIII, que tinha uma guarda sarracena em seu palácio na Sicília.

O cerco otomano cortou praticamente todos os meios de abastecimento de alimentos para Viena. A fadiga tornou-se tão comum que von Starhemberg ordenou que qualquer soldado encontrado dormindo durante o serviço fosse baleado. Cada vez mais desesperadas, as forças que controlavam Viena estavam à beira da derrota quando, em agosto, as forças imperiais comandadas por Carlos V, duque de Lorena(1643-1690), derrotaram Thököly em Bisamberg, a 5 km a noroeste de Viena. Em 6 de setembro, os poloneses sob o comando de Sobieski cruzaram o Danúbio 30 km a noroeste de Viena, em Tulln, para se unirem às tropas imperiais e às forças adicionais da Saxônia, Baviera, Baden, Francônia e Suábia. Às forças também se juntaram vários regimentos mercenários de cossacos zaporozhianos, contratados pela Comunidade Polaco-Lituana.

Uma aliança entre Sobieski e o imperador Leopoldo I resultou na adição dos hussardos poloneses ao exército aliado existente. O comando das forças aliadas europeias foi atribuído ao rei polaco, conhecido pela sua vasta experiência na liderança de campanhas contra o exército otomano. Notavelmente, ele alcançou uma vitória decisiva sobre as forças otomanas na Batalha de Khotyn (1673) e agora comandava um exército de 70.000 a 80.000 soldados, combatendo uma suposta força otomana de 150.000. A coragem e aptidão de Sobieski para o comando já eram conhecidas na Europa.

Quem eram os cavaleiros hussardos poloneses? A etimologia da palavra hussardo deriva da palavra sérvia gusar que significa "andarilho/brigador". Os hussardos se originaram em unidades mercenárias de guerreiros sérvios exilados da Hungria. Lanceiros mercenários de origem sérvia, conhecidos como Rascians, eram frequentemente contratados para combater os sipahi e a cavalaria de delicatessen otomanos . No século XV, os hussardos baseados nos de Matthias Corvinus foram adotados por alguns exércitos europeus para fornecer unidades de cavalaria leves e descartáveis. A referência mais antiga de hussardos nos registros poloneses data do ano de 1500, quando os rascianos foram contratados pelo Grande Tesoureiro Andrzej Kościelecki para servir sob a bandeira da casa real. No entanto, é possível que estivessem em serviço muito antes e a sua contribuição não estivesse bem documentada. À medida que os ataques otomanos na fronteira sudeste se intensificavam, a chamada Reforma Rasciana(1500-1501) durante o reinado de João I Alberto solidificou o papel de um dos primeiros hussardos nas fileiras polacas. A primeira formação de hussardos foi estabelecida pelo decreto do Sejm(parlamento polonês) em 1503, que contratou três bandeiras húngaras. Logo, o recrutamento também começou entre os poloneses. Sendo muito mais dispensáveis do que os lanceiros fortemente blindados da Renascença, os hussardos servo-húngaros desempenharam um papel bastante menor nas vitórias da Coroa polaca durante o início do século XVI, exemplificadas pelas vitórias em Orsha (1514) e Obertyn (1531). Durante o chamado "período de transição" de meados do século 16, os hussardos pesados substituíram em grande parte os lanceiros blindados montados em cavalos blindados, nas Obrona Potocznaforças de cavalaria polonesas que serviam na fronteira sul. Entre o século XVI e a Batalha de Viena em 1683, os Hussardos travaram muitas batalhas contra vários inimigos, a maioria das quais venceram. Nas batalhas de Lubiszew em 1577, Byczyna(1588), Kokenhausen(1601), Kircholm(1605), Klushino(1610), Chocim(1621), Martynów(1624), Trzciana(1629), Ochmatów(1644), Beresteczko(1651), Połonka(1660), Cudnów(1660), Khotyn(1673) e Lwów (1675).

Mapa da Europa na segunda metade do século XVII

A batalha começou antes que todas as unidades estivessem totalmente implantadas. Às 4h00 da madrugada do dia 12 de setembro, o exército otomano atacou, tentando interferir no envio de tropas da Liga Sagrada. Os alemães seriam os primeiros a contra-atacar. Carlos de Lorena avançou com o exército imperial à esquerda e outras forças imperiais no centro e, após intensos combates e múltiplos contra-ataques otomanos, assumiu várias posições-chave, em particular as aldeias fortificadas de Nussdorf e Heiligenstadt. Ao meio-dia, o exército imperial infligiu danos significativos às forças otomanas e estaria perto de um avanço.

Está registrado que a cavalaria polonesa emergiu lentamente de uma floresta próxima sob os aplausos da infantaria que esperava sua chegada. Às 16 horas, um destacamento de 120 hussardos engajou-se numa carga de cavalaria pesada, provando com sucesso a vulnerabilidade otomana ao ataque, mas sofrendo muitas baixas. Neste ponto, o vizir otomano decidiu abandonar esta posição e retirar-se para o seu quartel-general no acampamento principal mais a sul. No entanto, a essa altura muitos soldados otomanos já estavam deixando o campo de batalha.

O exército de socorro estava agora pronto para um ataque final. Por volta das 18 horas, o rei polonês ordenou que a cavalaria atacasse em quatro contingentes, três grupos poloneses e um do Sacro Império Romano-Germânico. 18.000 cavaleiros atacaram colinas abaixo, o maior ataque de cavalaria da história. Sobieski liderou o ataque à frente de 3.000 lanceiros pesados ​​poloneses, os "Hussardos Alados". Os tártaros Lipka que participaram do lado polonês usavam um ramo de palha em seus capacetes para distingui-los dos tártaros que lutavam no lado otomano. A carga rompeu rapidamente as linhas de batalha dos otomanos, que já estavam exaustos e desmoralizados e começariam a recuar do campo de batalha. A cavalaria dirigiu-se diretamente para os campos otomanos e para o quartel-general de Kara Mustafa, enquanto a guarnição vienense restante saiu de suas defesas para se juntar ao ataque.

As forças otomanas estavam cansadas e desanimadas após o fracasso da tentativa de enfraquecimento, o ataque à cidade e o avanço da infantaria da Liga Sagrada sobre o Türkenschanze. Menos de três horas após o ataque decisivo da cavalaria, as forças da Liga Sagrada venceram a batalha e defenderam Viena com sucesso. O primeiro oficial católico que entrou na cidade foi Luís Guilherme, Marquês de Baden-Baden, à frente dos seus dragões. Posteriormente, Sobieski parafraseou a famosa citação de Júlio César(Veni, vidi, vici ) dizendo "Venimus, vidimus, Deus vicit " - "Viemos, vimos, Deus conquistou".

De acordo com Walter Leitsch, historiador da Universidade de Viena, a derrota do exército Otomano fora dos portões de Viena, há 340 anos, é geralmente considerada o início do declínio do Império Otomano. No entanto, marca um ponto de viragem: não só foi interrompido o avanço otomano nos territórios cristãos, mas também na guerra seguinte que durou até 1698, quase toda a Hungria foi reconquistada pelo exército do imperador Leopoldo I. A partir de 1683, os turcos otomanos deixaram de ser uma ameaça para o mundo cristão.

Referências Bibliográficas

1.Atlas da História Universal, The Times, O Globo. Patrocínio:CCBB. 2001.
2.BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental. Volumes I e II. Tradução: Lourival Gomes Machado, Lourdes Santos Machado, Leonel Vallandro. 21ª Edição. Editora Globo. Porto Alegre, RS. 1978.

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

O lado sinistro das células-tronco

Neste dia do médico, convém relembrar uma das maiores descobertas da medicina genética: O uso das células-tronco! Desde que se deu a descoberta da molécula helicoidal do DNA, que a engenharia genética vem avançando. Desde o século XIX que os cientistas de todo o mundo têm estudado células-tronco, seja a partir de plantas, de camundongos, ou de células de pacientes em busca de cura para doenças.

Em 1868 o termo “células-tronco” aparece na literatura científica pela primeira vez, quando biólogo alemão Ernst Haeckel(1834-1919) usa a expressão para descrever o óvulo fertilizado que se torna um organismo, usa também para descrever o organismo unicelular que serviu como a célula ancestral para todos os seres vivos.

Em 1998, a equipe do biólogo James Thomson, da Universidade de Wisconsin(EUA), isolou e desenvolveu pela primeira vez em laboratório uma linhagem de células-tronco extraídas de embriões humanos. Foi um feito técnico e um problema ético para a pesquisa biológica. Feito, porque os estudos com essas células podem, em teoria, levar a melhores tratamentos ou à cura de uma lista quase interminável de doenças. Se devidamente cultivadas, as células-tronco embrionárias, e apenas elas, podem dar origem a todos os tecidos de um organismo, cerca de 220 tipos distintos de células que seriam a matéria-prima de novas terapias. Problema, porque a forma de obtê-las ofende a crença de parcelas da sociedade, em especial os religiosos, e, em alguns países, também as leis: as células-tronco são retiradas de embriões, que, ao ceder esse material, tornam-se inviáveis.

Porém, atualmente vem sendo confirmada uma hipótese antiga sobre as células tronco: que elas podem provocar câncer. A ideia de que os restos do nosso passado embrionário poderiam levar à nossa morte através do cancro é, na verdade, uma hipótese de longa data, que remonta a 1829. Ao longo de meados do século XIX, acumularam-se teorias e observações de que os tumores estavam ligados ao crescimento do tecido embrionário, culminando numa teoria abrangente do “repouso embrionário” apresentada por Julius Friedrich Cohnheim(1839-1884) em 1875. A teoria afirmava que os tumores podem surgir de células embrionárias que sobraram do desenvolvimento, e que permanecem adormecidas até serem ativadas, para se tornarem cancerosas.

As células-tronco são células humanas especiais que são capazes de se desenvolver em muitos tipos de células diferentes. Isso pode variar de células musculares a células cerebrais. Em alguns casos, eles também podem reparar tecidos danificados. Os investigadores acreditam que as terapias baseadas em células estaminais poderão um dia ser utilizadas para tratar doenças graves, incluindo alguns tipos de cancro. No entanto, as células-tronco também podem se tornar a causa do câncer.

As células-tronco cancerígenas(CSCs) são uma subpopulação de células dentro de um tumor que compartilham algumas características com as células-tronco normais. Tal como as células estaminais normais, as CSC têm a capacidade de se auto-renovar e diferenciar em múltiplos tipos de células, o que lhes permite impulsionar o crescimento e a propagação do tumor. Isto significa que as CSCs são responsáveis por impulsionar o crescimento e a propagação do tumor e são consideradas a causa raiz da recaída do cancro e da resistência aos medicamentos. Acredita-se que as CSCs sejam resistentes aos tratamentos convencionais de câncer, como quimioterapia e radioterapia, devido à sua capacidade de auto-renovação e regeneração após o tratamento.

Por outro lado, as células-tronco também apresentam potencial terapêutico no tratamento do câncer. Vários tipos de transplantes de células-tronco são usados nesta via de tratamento. O processo envolve a administração de altas doses de quimioterapia e, às vezes, de radiação para eliminar as células cancerígenas, mas essas altas doses também podem destruir as células-tronco do paciente e interromper temporariamente a produção de células sanguíneas. Para restaurar a produção de células sanguíneas, células-tronco saudáveis são transplantadas para substituir as células destruídas. Isto permite que doses mais elevadas de quimioterapia atinjam as células cancerígenas, e as células estaminais transplantadas podem crescer em células sanguíneas maduras que funcionam normalmente e estão livres de cancro.

Em alguns casos, os transplantes de células estaminais de um doador também podem ajudar a eliminar as células cancerígenas de forma mais eficaz do que as células imunitárias de um paciente. Essas células doadas podem localizar e destruir células cancerígenas.

Um lado sinistro, e cancerígeno, das células-tronco passa pela origem de certos tipos de câncer, e pode ser a causa de muitos outros. As pesquisas com células tronco estão fornecendo respostas para antigas perguntas da oncologia. O que tanto pode servir para o combate aos tumores, como um alerta do seu surgimento.

O mecanismo pelo qual os tecidos mantêm constante sua população celular é o mesmo em todo organismo, e está presente em quase todas as espécies superiores. Sua base são pequenos grupos de células-tronco de vida longa, que atuam como repositórios de células funcionais. A produção segue etapas rigorosamente organizadas, segundo as quais cada geração de células descendentes se torna gradativamente mais especializada.As células do sistema que forma o sangue, hematopoiéticas, são o melhor exemplo desse tipo de produção. Embora representem 0,01% das células da medula óssea de um adulto, as células-tronco hematopoiéticas(CTH), cada uma delas origina células progenitoras com diferenciação intermediária.

Durante muito tempo se acreditou que qualquer célula tumoral que permanecesse no corpo tinha potencial de reiniciar a doença. Hoje sabe-se que não é assim. E a descoberta de células-tronco cancerígenas tem a ver com isso. Alguns pesquisadores acreditam que no centro de todo tumor existe um punhado de células-tronco ael anômalas que mantêm o tecido maligno. Se estiver correta, a ideia poderá explicar por que os tumores muitas vezes se regeneram mesmo depois de serem quase destruídos por drogas anticâncer. Ela também indica uma estratégia diferente para o desenvolvimento das drogas, sugerindo que deveriam ser selecionadas segundo a letalidade para as células-tronco cancerosas, e não - como ocorre hoje - por sua capacidade de matar qualquer célula e diminuir os tumores.

O artigo de Michael F. Clarke e Michael W. Becker pode despertar sobre a eficácia das terapias com células-tronco. A principal função das terapias com células-tronco é restaurar as funções de tecido pela substituição de células lesadas. O artigo da dupla norte-americana demonstra os diferentes tipos de câncer, que se deve a alterações de células tronco tecido-específicas. Hoje já se sabe que linhagens de células embrionárias, quando transplantadas em adultos, podem originar tumores compostos de todos os folhetos embrionários. São chamado teratomas(tumor derivado de células germinativas). E há linhagens de células embrionárias que têm instabilidade genômica.

Também se sabe hoje que há dois tipos de células-tronco na medula óssea: Hematopoiética e mesenquimais. Estas últimas revelaram potencial oncogênico em camundongos. E pacientes transplantados com células-tronco hematopoiéticas desenvolvem neoplasias, que são crescimentos desordenados de células no organismo. Esse crescimento desordenado leva à formação de uma massa anormal de tecido, que pode ser cancerígeno ou não.

Mas nem tudo são desastres ou notícias ruins. Cientistas da Escola de Medicina de Harvard descobriram um jeito de transformar células-tronco em 'máquinas' para lutar contra o câncer cerebral. O estudo, publicado no jornal científico Células-tronco, foi resultado de um trabalho de cientistas do Hospital de Massachusetts e do Instituto de Células-Tronco de Harvard.

Em uma experiência com ratos, as células-tronco foram geneticamente modificadas para produzir toxinas que podem matar tumores no cérebro sem matar as células normais. Pesquisadores dizem que o próximo passo seria testar esse processo em seres humanos. "Depois de fazer toda a análise molecular e de imagem para controlar a inibição da síntese de proteínas dentro de tumores cerebrais, nós vimos as toxinas matarem as células cancerígenas", explicou Khalid Shah, principal autor da pesquisa e diretor do Laboratório de Neuroterapia no Hospital de Massachusetts e na Escola de Medicina de Harvard.

Pesquisadores querem "treinar" células imunológicas para reconhecimento e ataque às células cancerígenas. Outra ideia é o uso de drogas que forcem a diferenciação dessas células, de modo a eliminar sua capacidade de auto renovação. Com a combinação do método de destruir as vias genéticas responsáveis pela sua manutenção e pela sinalização do microambiente, se espera eliminar as verdadeiras células responsáveis pelo câncer.

Referências Bibliográficas

1.CLARKE, Michael F. e BECKER, Michael W. O potencial maligno das células tronco. Scientific American Brasil: As novas descobertas contra o câncer. nº30. Agosto, 2006.
2.As células-tronco e o câncer: https://hsci.harvard.edu/stem-cells-and-cancer
3.PIVETTA, Marcos. Células-tronco. Revista FAPESP. Edição 110. Abril, 2005. https://revistapesquisa.fapesp.br/celulas-tronco/

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Saladino - O rei do Oriente

Em tempos em que o mundo islâmico necessita se mostrar pacífico e equilibrado, é preciso falar do maior ícone da História islâmica. Alguém que transcendeu a rivalidade atual, como Israel, Hamas, Hezbollah,etc. Até mesmo transcendeu a rivalidade nas cruzadas. Quando se fala nas cruzadas, muitas pessoas pensam como um só evento, mas foram vários. Não só as oito cruzadas para Jerusalém e norte da África, mas também no Báltico contra tribos politeístas, além de cruzadas nos Bálcãs contra os otomanos a partir do final do século XIV. Isso somado ao fato desse termo "cruzadas" sequer existir na idade média europeia. Falava-se muito em "tomar a cruz". Talvez daí tenha surgido esse nome adotado hoje.

No final do século XII, um grande líder islâmico surgiria em meio aos curdos. Seu nome era Al-Malik Al-Nasir Salah Al-Dunya Wa'l-Din Abu'l Muzaffar Yusuf Ibn Ayyub Shadi Al-Kurdi, conhecido no Ocidente como Saladino. Um nobre curdo dos ayúbidas, tido como herói do islã até os dias de hoje. Quem está acostumado a ver prisioneiros com a cabeça decepada pela Al Qaeda, pode ter certeza que eles nada aprenderam com o maior líder islâmico da História. Líder carismático, implacável na luta, generoso na vitória. Aquele que seria conhecido como o maior adversário do rei Ricardo, Coração de Leão, da Inglaterra, durante a terceira cruzada. De família curda, Yusuf nasceu em 1137 nas montanhas de Tikrit, no atual Iraque. Curiosamente, a mesma cidade natal de Saddam Hussein. O pai dele, Najm Ad-Dim, tornou-se comandante da fortaleza do líder Zengi, em Baalbek, no Líbano atual. Seu tio, Xirkuh, chefiava o exército quando Zengi tomou Edessa em 1144.

Em 1146, com a morte de Zengi, subiu ao trono Nur Al-Din(1118-1174), da facção sunita. Em 1164 este rei enviou tropas para invadir o Egito. Xirkuh, tio de Saladino, era o líder do exército. Ele morreu algum tempo depois engasgado num jantar. Segundo o escritor paquistanês Tariq Ali, no Livro de Saladino, Xirkuh morreu de tanto comer. Saladino teria ficado tão traumatizado com isso que passou o resto da vida comendo pratos vegetarianos. Sim, isso mesmo! O maior herói da História islâmica se tornou vegetariano!

Em 1169, Saladino se tornou vizir de Nur Al-Din. Dois anos depois, eliminou todos os fatímidas(descendentes de Fátima e Ali, filha e genro de Maomé) do reino. Isso resultou numa elevação perante a corte do Califado de Bagdá. Saladino se tornou sultão do Egito desde então. Com a morte de Nur Al-Din ele ocupou Damasco e unificou o reino. Agora Saladino era governante absoluto, pois entenderia seu reino até a alta mesopotâmia.

Em 1177, já em conflitos contra os estados cruzados, Saladino perde a Batalha de Montgisard para outra lenda das cruzadas, Balduíno IV, o rei leproso de Jerusalém. E perdeu tendo muito mais tropas que o rei cristão. A vitória de Balduíno nesta batalha foi relatada muitos anos depois como um verdadeiro milagre. Algo que jamais poderia ter acontecido.

O rei Balduíno IV(1161-1185)e Filipe da Alsácia(1143-1191) que haviam chegado recentemente em peregrinação, planejaram uma aliança com o Império Bizantino para um ataque naval ao Egito. No entanto, nenhum desses grandes planos se concretizou. Em vez disso, Filipe decidiu se juntar à expedição de Raimundo de Trípoli(1140-1187) para atacar a fortaleza sarraceno de Hama, no norte da Síria. Um grande exército cruzado, o Hospitalário dos Cavaleiros e muitos cavaleiros templários o seguiram. Isso deixou o Reino de Jerusalém com muito poucas tropas para defender seus vários territórios. Enquanto isso, Saladino estava planejando sua própria campanha mobilizada do Egito, com o objetivo de retomar a Cidade Santa pela força, e partiu em 18 de novembro de 1177. Quando ele foi informado da expedição para o norte, deixando a "Cidade Santa" desprotegida, ele não perdeu tempo em mobilizar suas forças, invadindo o reino com um exército de cerca de 30.000 homens. Sabendo dos planos de Saladino, Balduíno IV deixou Jerusalém com, de acordo com Guilherme de Tiro, apenas 375 cavaleiros para tentar uma defesa em Ascalon. No entanto, Balduino foi interceptado e cercado lá por uma vanguarda avançada de tropas enviadas por Saladino.

Saladino continuou sua marcha em direção a Jerusalém, pensando que Balduíno não se atreveria a segui-lo com tão poucos homens à sua disposição. Ele atacou Ramla, Lydda e Arsuf, e avaliando que Balduino não era um perigo para suas forças, ele permitiu que seu exército fosse espalhado por uma grande área, saqueando e forrageando. O excesso de confiança de Saladino sobre o tamanho de seu próprio exército parece ter sido parte de seu desmoronamento. No entanto, sem o conhecimento de Saladino, as forças que ele deixou para subjugar o rei tinham sido insuficientes e foram superadas. E agora ambos, Balduíno e os Templários, tendo vindo de Gaza, estavam marchando para interceptá-lo antes de chegar a Jerusalém. Além disso, com suas forças sendo amplamente dispersas, a comunicação, o comando e o controle eram, na verdade, inexistentes. Os cristãos, liderados por Balduíno IV(na época com 16 anos), acompanharam os sarracenos executando uma varredura tática para o norte ao longo da costa, depois manobrando o sudeste, pegando Saladino de surpresa em Montgisard, perto de Ramla. Ibn Al-Athir(1160-1233), um dos cronistas árabes, menciona que Saladino pretendia sitiar um castelo dos cruzados na área. Mas o trem de bagagem de Saladino aparentemente ficou atolado, dificultando seu movimento. Os cronistas egípcios concordam que a bagagem havia sido atrasada em uma travessia do rio. Saladino foi tomado totalmente de surpresa. O exército dele estava em desordem. Parte disso foi retido pelo trem de bagagem à terra livre, enquanto outra parte de sua força foi amplamente dispersa em grupos de ataque em todo o campo. Alguns homens tiveram que se apressar para recolher suas armas do trem de bagagem.

Mapa da Batalha entre Saladino e Balduino IV

Formando-se para a batalha, Balduíno, os Cavaleiros de Raynald de Châtillon(1125-1187) e os Templários, embora numericamente inferiores, executaram uma carga frontal de cavalaria blindada no centro das linhas de batalha apressadamente formadas de Saladino, imediatamente causando pesadas baixas. O impacto foi imediato e devastador, criando uma cunha, quebrando a formação do inimigo. Balduíno, tão enfraquecido como estava por sua condição, lutou ao lado de seus homens, o que, como faria Henrique V na Batalha de Agincourt em 1415, teve um efeito inspirador em seu exército. Os francos, com o coração disciplinado dos Templários, colocaram os Ayyubidas em derrota, expulsando-os do campo. Eles massacraram um número importante de inimigos, vários dos quais eram generais de Saladino. Diante da derrota de suas tropas, Saladino encontrou abrigo no coração de sua guarda de elite, composto por mil mamelucos altamente disciplinados.

O rei Balduíno, lutando com as mãos enfaixadas para cobrir suas feridas, estava no meio da luta, inspirando ainda mais suas tropas. O comando egípcio estava sob o sobrinho de Saladino, Taqi ad-Din. Taqi ad-Din aparentemente atacou os francos enquanto Saladino estava reformando sua guarda mameluca. O filho de Taqi, Ahmad, morreu nos primeiros combates. Os homens de Saladino foram rapidamente sobrecarregados. Saladino felizmente, evitou a captura escapando, como Ralph de Diceto(1120-1202) afirma, em um camelo de corrida. Ao cair da noite, os egípcios que acompanhavam Saladino tinham chegado a Caunetum Esturnellorum perto do monte de Tell el-Hesi. Isto fica a cerca de 40 km de Ramla. Balduino perseguiu Saladino até o anoitecer, e depois se retirou para Ascalon. Cansado depois de dez dias de fortes chuvas, e sofrendo a perda de cerca de noventa por cento de seu exército, incluindo seus guarda-costas pessoais mamelucos, Saladino fugiu de volta para o Egito, assediado por beduínos ao longo do caminho. Apenas um décimo de seu exército voltou para o Egito com ele.

Após a unificação do Egito e da Síria, Saladino partiu aos preparativos para seu maior objetivo: Jerusalém! Em 2 de outubro de 1187 as tropas do Sultão entraram em Jerusalém. A derrota na Batalha de Hattin, ainda no deserto, e a queda de Jerusalém, abalaram o velho continente europeu. Josias, arcebispo de Tiro, partiu para a Europa. Chegou primeiro à Sicília, depois à Roma. O papa Urbano III teria morrido ao ser informado. No Oriente, diferentemente de seus inimigos, Saladino ofereceu possibilidade de exílio aos moradores da cidade. Mas, para isso, tiveram que pagar. Os pobres foram isentos. Porém muitos tiveram que vender tudo para saírem livres.

A derrota na Batalha de Hattin foi uma "facada nas costas dos cruzados". Fragilizou-os e facilitou a queda de Jerusalém. Na manhã de 4 de julho, os francos tentaram abrir caminho para o lago, distante aproximadamente 10 quilômetros. Saladino respondeu mandando seus homens atearem fogo nos arbustos em volta, aumentando o calor e produzindo espessa fumaça, o que veio a acrescentar mais sede aos ocidentais. Quando o calor atingiu o auge por volta do meio-dia, os arqueiros de Saladino, cada um equipado com 400 flechas, receberam ordens para lançarem um bombardeio livre e devastador sobre o inimigo. Na confusão resultante, a infantaria franca se dispersou, abandonando sua posição protetora usual em volta da cavalaria. Um grupo, comandado por Raimundo de Trípoli(1140-1187), rompeu através do cerco muçulmano e escapou. Mais tarde, surgiu uma versão de que receberam permissão para saírem por um acordo prévio com Saladino, demonstrando cabalmente as traições devidas às rivalidades, desconfianças, rixas e brigas entre os nobres latinos. A desordem geral do fatídico dia foi citada em uma carta da época, enviada ao Mestre dos Cavaleiros Hospitalários na Itália. A disciplina dos francos não foi tão boa como deveria ter sido, com muitos dos combatentes não dando apoio quando os Cavaleiros Templários acuavam o inimigo. Consequentemente, eles se encontraram isolados, cercados e, finalmente, massacrados.

Os francos restantes reuniram-se nas ladeiras dos dois morros do Monte Hattin (na verdade uma ampla colina, os restos de um antigo vulcão). Os morros são também chamados Cornos de Hattin, um nome posteriormente muitas vezes aplicado à própria batalha. O local oferece fraca proteção graças a um bom número de arruinadas muralhas da Idade do Ferro, mas o resultado era inevitável. Duas últimas e desesperadas cargas que visavam diretamente a Saladino e sua guarda pessoal, falharam, e os muçulmanos encerraram em vitória.

Guy de Lusignan(1150-1194) foi capturado, mas tratado hospitaleiramente e mais tarde libertado, enquanto Reynald de Chatillon(1125-1187), que anteriormente havia atacado uma caravana muçulmana, contrariando uma trégua, recebeu merecido castigo em retribuição, sendo impiedosamente esquartejado, o primeiro golpe vindo da própria cimitarra de Saladino. A maioria dos outros nobres francos capturados foram colocados em liberdade após pagamento de um resgate, porém os soldados comuns foram vendidos como escravos. Diferentemente, de acordo com o historiador árabe Ibn al-Athir, quaisquer irmãos dos Cavaleiros Hospitalários e Cavaleiros Templários que tenham sido capturados foram executados, pois Saladin temia as habilidades de combate e a devoção à causa cristã. O Mestre dos Templários, Gerard de Ridefort, foi poupado para resgate, mas tendo perdido 230 de seus cavaleiros, sua ordem foi colocada de joelhos.

Estados cruzados no Oriente, em meados do século XII

Saladino, além de obter uma vitória, conseguiu a sagrada relíquia da Verdadeira Cruz, retirada da tenda real de Guy após a batalha. A perda de tão precioso talismã espiritual funcionou como um verdadeiro choque para os francos e para a Europa Ocidental em geral. Saladino celebrou o sucesso em Hattin erguendo um edifício abobadado no local, cujas fundações ainda são visíveis hoje em dia. Outra atitude de Saladino, após conquistar Jerusalém, foi lacrar nove das dez portas da Igreja de Santo Sepulcro. A única que ficou aberta ganhou uma chave, que foi confiada a duas famílias árabes: Nuseibeh e os Joudah. Ainda hoje a chave permanece em poder delas.

Saladino virou uma espécie de ícone do mundo islâmico. Hoje muitas escolas militares no Oriente Médio usam suas táticas militares como exemplo. Isso a tal ponto que muitos líderes do mundo árabe "quiseram ser Saladino". Saddam Hussein(1937-2006), Aiatolá Komeini(1902-1989) e o que mais perto chegou do antigo sultão, que foi Gamal Nasser(1918-1970), antigo líder do Egito. Mas seus valores éticos estão longe desse líder, como o caso de Saddam Hussein, que lutou contra o Irã, tendo o apoio dos EUA. Coisa que Saladino jamais faria. Todos eles buscaram se assemelhar ao líder curdo da época das cruzadas, mas nenhum deles atingiu seu nível de gentleman. Dizem que pouco antes de tomar Jerusalém, Saladino teria dito ao filho mais velho, Al-Afdal:"Lembre que todos somos mortais e governamos porque o povo assim o permite. Nunca tente obter riquezas porque demonstra insegurança." Por manter esse pensamento ao pé da letra, Saladino morreu pobre.

Em fevereiro de 1193, após se desentender com o califa de Bagdá, numa briga que poderia rachar o islã, Saladino ficou depressivo. Morreria um mês depois, aos 55 anos. Como não possuía posses, seus seguidores fizeram "vaquinha" para comprar argila seca para o seu túmulo. Dizem que no leito de morte teria dito:"Espetem um trapo em meu porta bandeira. E mostrem ao povo que isso é tudo que o rei do Oriente levará para o túmulo..."

Referências Bibliográficas

1.Batalha de Hattin. WORLD HISTORY ENCYCLOPEDIA.https://www.worldhistory.org/Battle_of_Hattin/
2.SGARIONI, Mariana. As mil e uma noites de Saladino. Coleção Grandes Guerras, Volume V. Aventura na História. Ed. Abril.2005. São Paulo.
3.TYERMAN, Christopher. A Guerra de Deus: Uma Nova História das Cruzadas (vol. 1). Rio de Janeiro: Imago, 2010.
4.A Batalha de Montgisard.https://northumberlandkt.com/?page_id=2311

terça-feira, 10 de outubro de 2023

HIV: A descoberta 40 anos depois

Muitos de nós, que vivemos os anos 80 e 90 no século XX, lembramos da descoberta, e da febre(e medo), da AIDS. Muitas pandemias já assolaram o mundo, mas a AIDS não é uma delas. É uma doença silenciosa, de período incubatório longo. Não faz o feitio das pandemias que já estiveram sobre a terra.

O termo AIDS (Acquired Immunodeficiency Syndrome) foi utilizado pela primeira vez em 1982, quando ainda era desconhecido o agente causador da doença. Foi por intermédio do Centers for Disease Control(CDC), nos EUA, que ocorreu a classificação para denominar a epidemia apelidada de "câncer gay" no Brasil. Ela foi atribuída a homens homossexuais de Los Angeles, Nova Iorque e São Francisco. E ainda ocorriam boatos que esse vírus teria sido "fabricado em laboratório por virologistas ingleses na África". O HIV é um retrovírus, possuindo um envelope lipídico, um capsídeo e o RNA viral. Possui também a proteína chamada Transcriptase Reversa, que converte RNA em DNA.

Na manhã de domingo do dia 12 de junho de 1983, leitores do Jornal do Brasil no Rio de Janeiro, e Notícias Populares de São Paulo, acordaram com a seguinte manchete: "Brasil registra dois casos de 'câncer gay', e a 'peste gay' já apavora São Paulo". Como a Peste Negra do século XIV na Europa, a epidemia foi associada a um castigo divino. Em 1985, já se associava a doença a sintomas de Sodoma e Gomorra.

Muitas terapias têm sido testadas desde aquela época. Medicamentos como AZT(Azidotimidina), assim como o DDI(Didanosina), é um antirretroviral direcionado a inibir a proteína chamada Transcriptase Reversa, que no HIV faz o RNA viral sintetizar DNA. Sim, isso mesmo! Como os vírus não são seres vivos, nem sempre seguem a ordem DNA —> RNA → Proteínas, como existe nos processos bioquímicos dos seres vivos. Nenhum dos dois foi criado para o HIV, mas foram utilizados como antirretrovirais após a descoberta do Dr. Luc Montagnier em 1983.

Antirretrovirais, como o caso do Fuzeon, são grandes descobertas. Este seria uma espécie de "pílula do dia seguinte para grupos de risco", como se pode dizer. Este é um antiviral que interfere na fusão do envelope viral com a membrana celular dos linfócitos T4. Quando as pessoas acham que tiveram contato com o HIV, tomam este medicamento para evitar qualquer penetração do vírus na célula. Outro seria o Ritonavir, que age com bloqueio de proteases. Ele impede o desmonte da mega molécula proteica que daria origem ao capsídeo, envelope viral e a enzima viral. Já o AZT impede a ação da Transcriptase Reversa. Impede que a cadeia de DNA seja montada pelo RNA viral.

O HIV foi detectado pela primeira vez em infecções em 1981, nos EUA. Mas sua descoberta, e mapeamento, foi em 1983 na França. Foi feito pelo virologista Dr. Luc Montagnier(1932-2022), e a Dra. Françoise Barré-Sinoussi(1947- ), ambos do Instituto Pasteur(França). E, simultaneamente, descoberto pelo Dr. Robert Gallo(1937- ), da Universidade de Marlyland(EUA). Dr. Robert Gallo se inspirou no Dr. David Baltimore(1938- ), que criou a Classificação de Baltimore, que classifica os vírus em grupos. Então o Dr. Robert Gallo começou suas pesquisas sobre os retrovírus, ou seja, vírus que não só são de RNA, mas seus RNAs podem montar cadeias de DNA. E fazem isso mediante uma proteína chamada Transcriptase Reversa. Dessas pesquisas nasceu a descoberta do HIV nos EUA. Em 1987, os presidentes Ronald Reagan e Jacques Chirac, dos Estados Unidos e França respectivamente, chegaram a um acordo de co-autoria entre os dois cientistas franceses e o norte americano.

O boato que se divulgou a respeito do HIV, como tendo sido "fabricado em laboratório na África" se deve à confusão que se faz entre o HIV-2, segunda variante do HIV, só encontrado na África Ocidental, e o SIV(Vírus da Imunodeficiência Símia). As pessoas fazem muitas confusões biológicas com que não se sabe. Assim como o então presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, alegou haver HIV nas vacinas da Pfizer contra o vírus "sars cov 2", sendo que os dois vírus nem "parentes" são, pela classificação de Baltimore. E isso muito espantou o Dr. Robert Gallo da Universidade de Maryland, que perguntou como deixamos um presidente "que não é da área" dar palpite sobre essas coisas. Esse último boato surgiu por causa de uma matéria da Revista Exame, que foi mal compreendido.

Muitos antirretrovirais, como AZT e o DDI, foram usados. Mas, além de gerarem muitos efeitos colaterais(antivirais são bem mais pesados que antibióticos e antifúngicos), forçaram a seleção natural viral, fazendo aparecer os resistentes. Por isso se buscou saídas alternativas para essas falências terapêuticas, como trabalhos naturais com moléculas extraídas de vegetais, que apresentaram ação inibidora de replicação do HIV. Substâncias retiradas de plantas, como ácido platânico e ácido betulínico, são usadas em lugar de antivirais tradicionais. Existem, nesses vegetais, substâncias inibidoras da Transcriptase Reversa, como é o caso dos calanolídeos.

Assim como substâncias do guaco combatem o Trypanossoma Cruzi, protozoário da doença de Chagas. Substâncias como o Galato de Epigalocatequina(EGCG), isolado do chá verde, que impede a ligação da glicoproteina 120 do HIV-1 com a molécula CD4 de nossos linfócitos T, está sendo usada como alternativa natural anti-HIV.

E ainda há o uso de terapia gênica, como o uso do CRISPR/Cas9 em mutações artificiais. O CRISPR(do inglês Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats) aliado à proteína Cas9, conhecido como tesoura genética, foi criado para uso de edições genéticas em vírus bacteriófagos. E o Cas9 é uma enzima que usa sequências CRISPR como guia para reconhecer, e abrir cadeias específicas de DNA, que são complementares à sequência CRISPR. E essa terapia de tesoura é usada para bloquear a entrada do HIV na célula através da deleção do gene CCR5. Isso porque os receptores CD4 são importantes na célula, não sendo recomendável sua inativação. Sabendo que a mutação natural do gene CCR5 é uma condição autossômica recessiva que existem(por exemplo) em cerca de 10 a 20% da população europeia. Indivíduos que possuem a inativação do CCR5 podem viver de forma saudável, mesmo tendo o HIV. E foi justamente de uma mutação natural do CCR5 que surgiu a quarta cura do HIV nestes últimos anos. Um paciente, portador do HIV desde os anos 80, adquiriu leucemia e precisou receber transplante de medula óssea na Universidade da Califórnia(EUA). Como o doador compatível tinha o CCR5 inativado, ele adquiriu isso, resultando na cura do HIV. A ciência avança a passos largos nesse início de século XXI….

Referências Bibliográficas

1.Vírus – Inimigos Úteis. Scientific American, nº28, Segmento – Duetto Editorial LTDA, 2008
2.HISTÓRIA. Dossiê Homossexualidades: da perseguição à luta por igualdade. Revista da Biblioteca Nacional, ano 10, n. 119, 2015.
3.Antivirais, 2021. Prof Alexandre Lourenço. https://www.youtube.com/watch?v=VqCcwlaTk2o

domingo, 3 de setembro de 2023

A descoberta do DNA - Os 70 anos de aplicação genética

Neste dia do biólogo, inaugurado em 3 de setembro de 1979, convém falar na maior descoberta da idade contemporânea: O modelo helicoidal da cadeia de DNA! A molécula de DNA foi descoberta em 1869 pelo bioquímico suíço Johann Friedrich Miescher(1844-1895). Mas sua estrutura helicoidal(o que é muito mais importante) foi descoberta pelo bioquímico norte-americano James Dewey Watson(1928- ) e o biofísico britânico Francis Harry Compton Crick(1916-2004), há 70 anos atrás.

Porém essa descoberta do formato helicoidal do DNA pode anteceder ao ano de 1953. Dentre os momentos históricos mais fantásticos da ciência biológica está o trabalho da química britânica Rosalind Franklin(1920-1958), com difração do raio X do DNA, fornecendo uma prova mais empírica do formato helicoidal da molécula. Para Francis Crick, Rosalind não era uma cientista muito imaginativa. Para Watson, os métodos dela contrariavam a orientação metodológica adotada por eles, pois não era fruto de muitas experimentações. E também ambos não acreditavam que não havia nenhuma inclinação teórica para representação helicoidal da molécula.

Em 1951, Rosalind apresentou documentação farta de que o grupo fosfato estaria na parte externa da hélice do DNA. O que Francis e James fizeram foi juntar peças do que já havia. Porém Francis e James fizeram muito mais do que apresentar o modelo de dupla-hélice do DNA. Apresentaram, na sequência, aquilo que viria a ser o dogma central da biologia: A compreensão das funções do RNA. O artigo do Nature em 1953 trouxe uma guinada para a medicina e a biologia. Em 1957 foi descoberto que o DNA se auto replica, o que chamou a atenção do mundo acadêmico para os dois cientistas. Em 1958, viria a falecer Rosalind na Inglaterra. Em 1962 viria o prêmio Nobel de Medicina para Francis Crick e James Watson.

Hoje o DNA não é apenas uma entidade científica. Ele irrompeu como fenômeno natural nas ciências e nas artes, como metáfora para nossas várias naturezas. O próprio James Watson admitiu, numa entrevista à revista Scientific American em 2003, até sobre o caráter laico da ciência, hoje muito debatido e controverso: "Os EUA não são mais como na época da chegada dos puritanos. Mudamos tudo. Nunca procuramos respeitar o passado. Tentamos melhorá-lo. E creio que qualquer coisa contra isso, seria contra o espírito humano". Isso foi a ciência norte-americana, renascendo após o controverso Julgamento do macaco no Tennesse(EUA) em 1925, naquele "mico biológico" nacional. Seria o troco dado ao atraso do conservadorismo.

Em 14 de abril de 2003, numa verdadeira revolução biológica, alguns cientistas anunciaram ao mundo o sequenciamento de 3 bilhões de pares de nucleotídeos de DNA, com a receita de como se "faz um ser humano". Nascia ali o famoso projeto Genoma. Dirigido pelo geneticista Francis Sellers Collins, o projeto visava uma espécie de "comemoração" pelos 50 anos do artigo da Nature sobre a descoberta helicoidal do DNA.

Convém lembrar que quando Watson e Crick descreveram o DNA, o codificaram com 4 letras(A,C,G e T). Ou seja, quatro nucleotídeos Adenina, Citosina, Guanina e Timina. Mas são 20 aminoácidos nas moléculas protéicas, então óbvio que era necessária uma "palavra genética" para formar o aminoácido. O código pode evoluir(lembrando de Darwin), o que significa que evoluiu de fato. A relação códon-aminoácidos da natureza não é um mero acidente.

Algumas pessoas devem estar se perguntando: Mas qual a utilidade prática disso? Cura para doenças congênitas, conserto para síndromes vinculadas ao DNA ou RNA, etc. Um exemplo foi o uso da terapia genética do CRISPR/Cas9, a chamada tesoura genética, para tratamento de HIV. Mas casos de ética tentam evitar isso, para não permitir alguns avanços, como a Ovelha Dolly, no Instituto Roslin, na Escócia. A engenharia genética sempre pôs medo na população em geral.

O desenvolvimento de terapia genética foi um grande avanço na biologia molecular do século XXI. O CRISPR/Cas9(do inglês, Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats, CRISPR), aliada a proteína Cas9, se trata de repetições palindrômicas, que seriam trocas, adições ou subtrações de nucleotídeos, ou trocando a ordem de códons de DNA ou RNA, a fim de ter um objetivo alcançado. Já se conseguiu inutilizar HIVs dentro de células brancas do sangue em camundongos, por exemplo. Mas as terapias não param aí. Também tem as terapias usando RNAm, já usadas há 20 anos, que recentemente foram usadas nas vacinas da Pfizer contra a COVID19.

E falando em COVID19, também há a descoberta do bioquímico norte-americano Kary Banks Mullis(1944-2019), em 1983, que lhe rendeu o Nobel de química em 1993, dez anos antes do anúncio do projeto Genoma. Era o PCR(Polymerase Chain Reaction), ou técnica da Reação em Cadeia da Polimerase, que permite os testes para diagnóstico de COVID19. E não só isso, mas diagnóstico de tuberculose também. E o Dr. Kary Mullis morreu alguns meses antes de desencadear a maior pandemia do século XXI, que paralisou o mundo. E não assistiu todo planeta usando sua bioquímica em testes para diagnóstico da doença que assombrou o mundo. Mas isso já seria outra história…

Referências Bibliofráficas

1.SMITH, John Maynard. Os limites da Teoria da Evolução. In:A Enciclopédia da ignorância. Editora Universidade de Brasília,1981. Parte II, capítulo 5. Pgs 273-281.

2.Revista Scientific American Brasil. Genoma:O código da vida. Edição Especial. nº16, 2013. Editora Duetto.