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segunda-feira, 28 de novembro de 2022

A Concordata de Worms - O berço do estado laico ocidental

Quando se fala do estado ser laico, muitos não sabem que isso foi feito de uma forma gradual no decorrer dos séculos. Não só dos séculos da era cristã, mas até antes dela. Por causa do intenso papel religioso no estado, a maioria dos impérios do passado não via a possibilidade dessa separação. Por isso, não precisa dizer que ateísmo é uma ideia recente. Se falando em ateísmo científico podemos dizer que remonta a meados do século XVIII, às vésperas da Revolução Francesa.

Em termos de antiguidade a separação da religião em meio ao estado surgiu na Grécia antiga. Ali foi o 1° lugar em que a medicina e a religião começaram a separar-se. A era greco-romana trazia um caminho promissor nessa área, porém houve a cristianização do império romano com o Edito de Tessalônica em 380 AD, pelo imperador Teodósio I.

Após a queda do império romano, a Europa se fragmentou. E levaria mais de 300 anos até a Europa se ver unificada política e religiosamente, sob Carlos Magno, rei dos francos e dos lombardos. Este rei tinha uma grande amizade pelo papa Adriano I. Porém, com a morte do pontífice, houve uma formação de um papado monárquico, que será preciso explicar como isso deu início.

Antes de mais nada, é preciso explicar que nem sempre o papado teve esse poder político medieval. As coisas não ocorrem da noite para o dia. O século X, período dos imperadores otônidas, ficou conhecido como saeculum obscurum(o século das trevas). Boa parte do que se conhece a idade média como idade das trevas vem daqui. Foi um período de intrigas e batalhas constantes, de papas e antipapas. Basta pensar na exumação macabra do papa Formoso, depois de nove meses de morto, para que seu corpo pudesse ser julgado. Seu corpo foi sentenciado, o dedo de sua mão direita(com a qual dava benção) foi cortado, e seu cadáver atirado no rio Tibre. Porém o castigo veio, literalmente, a cavalo. O papa Estevão VI, responsável pelo julgamento, foi preso e estrangulado após uma revolta popular. Já o corpo de Formoso foi encontrado, e posteriormente sepultado junto a outros papas. Também pode ser lembrado o governo de terror da "senadora" Marósia, que foi amante de um papa(Sérgio III), assassina de outro(João X) e mãe de um terceiro(João XI). Marosia manteve seu filho preso no castelo de Santo ngelo até que ela mesma foi presa pelo próprio enteado, quando já estava em seu terceiro casamento. Os papas dessa época eram seus instrumentos destituídos de poder. Por isso que, entre Carlos e Magno e a Concordata de Worms, o papado não teria o poder que muitos imaginavam dele.

Durante o reinado de Carlos Magno houve uma formação de nobres fiscalizadores do império franco, como os missi dominici, ou seja, nobres e clérigos que andavam pelo império como fiscais do rei. Após a morte do rei franco, o reino se dividiu pelo Tratado de Verdun(843 AD), e a igreja se fortaleceu. Com a ascensão do império germânico após Luís I, o reino germânico do centro da Europa passou a ser uma monarquia eletiva, onde o imperador era um dos quatro grandes duques alemães(Francônia, Saxônia, Suábia e Baviera), eleito pelos outros três.

No tempo de Oto I, imperador germânico, já havia bispos com poderes condais. E isso iniciou pelo medo dos imperadores germânicos tinha dos nobres. Os imperadores germânicos começaram a distribuir terras aos bispos, fazendo-os funcionários do estado, para contrapor ao poder dos duques, de forma que o trono se tornasse cada vez mais hereditário. Essa ousadia custou bem caro mais tarde.

Sob o pontificado de Nicolau II(Geraldo de Borgonha, bispo de Florença) nasceu o colégio de cardeais(cardinalis, literalmente dobradiças), onde futuramente seriam eleitos os papas. Havia começado ali um protesto de não intervenção do imperador nos assuntos eclesiásticos, elegendo bispos e papas. Mas o berço das transformações veio um pouco antes. Veio em abadias como de Cister e de Cluny, ambas na França, que geraram futuros papas que não mais iriam querer a interferência do estado. Porém não iriam abrir mão da interferência no estado, pela igreja. E essa duplicidade geraria muitos conflitos até o século XIV, e crises até a Reforma Protestante.

Os clérigos reformistas obtiveram apoio dos normandos que haviam se estabelecido no sul da Itália, na Sicília. Além do apoio de Matilde de Toscana, obtiveram o apoio de um movimento chamado pataria, que era um movimento reformista do baixo clero, que era contra a interferência imperial na igreja. Coisas iriam acontecer. O papa Leão IX provocou o racha com os cristãos orientais em 1054. Em 1073 é eleito o papa Gregório VII, ex-monge do grupo reformista(não há provas documentais de que fora cardeal), chamado Hildebrando, para o trono pontificio.

Esse novo pontificado acelerou o processo das investiduras, o questionamento do imperador investir bispos e papas aos cargos eclesiásticos. O antigo monge iria entrar em conflito com o imperador germânico Henrique IV e, apoiado pela nobreza normanda da Sicília, como o caso de Roberto de Guiscard, fez o imperador germânico peregrinar até o castelo de Canossa, onde estava o papa, para prometer não mais tentar investir bispos e papas, mas respeitar as decisões do colégio de cardeais.

Todo esse conflito iria se estender até o sucessor do império, Henrique V, e o papa Calisto II, na Concordata de Worms, em setembro de 1122. Na Concordata ficou estipulado que o imperador faria a investidura temporal(báculo), e o papa faria a investidura espiritual(anel e cruz). E assim o sistema de equilíbrio entre o Papado e o Império, criado por Carlos Magno, e aperfeiçoado pelos otônidas, havia chegado ao fim. O autoritarismo, e a displicência dos imperadores sálicos tinha colocado um ponto final nisso. Os bispos agora não eram mais funcionários do estado, mas vassalos do império. Sem o controle sobre os bispos, os imperadores alemães perderam o controle sobre os duques. Ao mesmo tempo, uma grande parcela de terras do império germânico passa para o controle da igreja. Começava aqui o período de supremacia do poder papal na Europa Medieval. Supremacia esta que teria consequências para rachar a própria Igreja na Reforma Protestante. Reforma que o sucesso se deu principalmente devido à fraqueza do império germânico sob os Habsburgos.

A supremacia do papal, iniciada a partir da Concordata de Worms, deu consequências para a Igreja anos mais tarde. Outros reinos europeus começaram a se prevenir contra a supremacia papal, rejeitando a condição de um papa "juiz de reis cristãos", uma espécie de "Samuel do Antigo Testamento no seio de Roma", que seria imitado por outros reinos mais tarde, ao misturar política e religião.

Essa supremacia gerou o papa Inocêncio III, o mais absolutistas dos papas da história da Igreja, que coordenou o quarto Concílio de Latrão, gerou a quarta cruzada, que morreu sete meses após o início do Concílio, achado nu em pêlo na catedral de Perugia, roubado pelos próprios criados. E além de gerar este papa, culminou com o papa Bonifácio VIII, que teve seu ápice em Agnani, bem diferente de Canossa. Era o início do século XIV, da guerra dos cem anos e da peste negra. Estas coisas trariam a colheita dos exageros de Gregório VII e Inocêncio III.

Por isso que a Alemanha viria a ser o berço da Reforma Protestante. Pois havia um sentimento de revanchismo em relação ao conflito de Canossa, ou "humilhação de Canossa", como muitos preferiram chamar. O imperador Henrique IV seria visto como uma espécie de herói nacional na Alemanha Protestante do século XIX. Há uma placa, colocada em 1872 por Otto Von Bismarck, que mostra muito bem este sentimento. Diz "Nach Canossa gehen wir nich" (nós não iremos para Canossa). E até se esquece que o próprio Papa Gregório VII teve que fugir após uma virada que o imperador Henrique IV deu no império. Haveria de morrer fora de Roma, em fuga. Suas últimas palavras foram:"Amei o que é correto e odiei a iniquidade, portanto, morro no exílio". Hoje, em seu período mais secular, o mundo oferece à Igreja muito mais um futuro de Agnani do que de Canossa. A história da Igreja se desenvolveu para resultar nessa resposta.

"Que a igreja obtenha o que é de Cristo, e que o imperador tenha o que é seu" ( Obtineat Aecclesia quod Christ est, habeat imperator quod suum est) Papa Calixto II ao Imperador Henrique V, 19 de fevereiro de 1122

Referências bibliográficas

1)KÜNG, Hans. A IGREJA CATÓLICA. Editora Objetiva. 2001.
2)ARRUDA, José Jobson de Andrade. História Antiga e Medieval. 3ª Edição. São Paulo:Ática,1979.