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sábado, 28 de dezembro de 2024

O estado laico - Os sete séculos de Marsilio de Pádua

Palácio da Razão, em Pádua, na Itália.

Como os estados se tornam laicos? Será que esse modelo, hoje muito mais ocidental, sempre existiu? Claro que não! O ocidente criou o laicismo aos poucos. Mas a base disso, incrivelmente, vem da Igreja. A separação entre Igreja e Estado, hoje tão comum, não existia nas idades média e moderna. Assim como religião e medicina formavam uma coisa só na idade antiga. A primeira civilização a separar esses dois conceitos foi a grega. Separando médicos de sacerdotes.

Mas a origem disso, como conhecemos hoje, veio do Cristianismo. Tanto Guilherme de Ockham(1287-1347), como Tomás de Aquino(1225-1274), já deram sinais de laicismo em seus escritos. Mas o grande divisor de águas foi Marsílio de Pádua(1275-1342). Filósofo italiano que chegou a ser reitor da Universidade de Paris, e gênio do texto Defensor Pacis(defensor da paz), agora completando 700 anos de escrito. Neste trabalho somos levados a compreender o significado, e a importância, da lei que deve dar regras precisas às comunidades para que possam ter uma convivência pacífica. É dada grande importância ao governo, que é o órgão mais importante do Estado, cuja tarefa é fazer cumprir as leis a todo custo, mesmo pela força, se necessário.

Marsilio examina, em primeiro lugar, a natureza da sociedade humana e as regras que a regem, depois ilustra a natureza da Igreja na sua organização, e nos seus propósitos. Conhece Aristóteles, mas não é influenciado por ele. O conceito de sociedade civil, como organismo natural baseado na família, deriva de Aristóteles e especifica que fazem parte do Estado.

Marsílio afirma que o poder legislativo pertence ao povo considerado Universitas e que também possui o que chamamos de soberania popular, ainda que o conceito de soberania entendida no sentido moderno só seja desenvolvido posteriormente.

“Dizemos, portanto, de acordo com a verdade e opinião de Aristóteles, na Política, livro III capítulo VI, que o legislador ou a causa primeira e eficiente da lei é o povo ou a sua parte prevalecente, através da sua eleição ou vontade expressa em palavras na assembleia geral de cidadãos, que ordena que algo seja feito ou não em relação aos atos civis humanos sob a ameaça de uma pena ou punição temporal.”

Deus é estranho aos princípios políticos de Marsílio, embora estivesse presente nas instituições medievais como causa primeira e objetivo último. No Defensor Pacis Deus é considerado entre os fatores secundários e gerais, sendo o homem a causa primeira do consórcio social e a base essencial e substancial do Estado.

Nas obras compiladas no início do século XIV em torno da luta entre Filipe, o Belo e Bonifácio VIII, além de tratar do conflito entre o poder civil e o papado, Marsílio coloca, ainda que de forma ainda indefinida, a questão do conflito relação entre o Estado e o Império: arena doutrinária onde os monarquistas opõem as razões do Rei da França às reivindicações do Imperador.

Marsilio configura o Estado como um organismo composto no qual se encontram composto no qual as Partes cada uma com sua função. Esta distinção nas Partes, além de ter uma origem puramente humana, tem também uma origem política, sendo estabelecida pelo Legislador Humanus, o povo, e são precisamente estes que fazem todas as distinções, incluindo a do sacerdócio. Ele considera o sacerdócio como parte do Estado, uma Pars necessária , mas nada mais do que parte de um todo.

Na segunda parte do “Defensor Pacis”, Marsilio dedica muito mais páginas ao problema das relações entre o Estado e a Igreja e à sua resolução do que na primeira parte. Se o sacerdócio for considerado nada mais do que uma parte do Estado, uma pars necessária , mas nada mais do que a parte de um todo, a lei divina é considerada como um remédio para a desordem e a corrupção espiritual derivada do pecado: o fim do o sacerdócio é, portanto, a pregação desta lei divina que é, em última análise, a lei evangélica.

Acima de tudo, nega o poder do Bispo de Roma sobre a Igreja e a hierarquia eclesiástica, afirmando que a fonte de todo o poder é a universitas fidelium, responsável pela nomeação dos ministros de culto. Daí resulta que, sendo a communitas fidelium a mesma communitas civium que forma o Estado, a fonte de todo o poder é a mesma, o povo.

Marsílio nega tanto a primazia espiritual como temporal do bispo de Roma, o Papa. Primazia que foi construída pouco a pouco, de forma imperceptível, através da sedimentação consuetudinária, adquirindo primeiro uma autoridade moral e depois uma autoridade política cada vez maior. O povo não tinha conhecimento deste processo, tanto que acabou por aceitar o primado romano como querido por Deus. A autoridade que é negada ao Pontífice é, em vez disso, reconhecida no Concílio Ecumênico.

Porém a Igreja, através da Cúria Romana, tentou reagir a isso. No início do século XIV, Felipe IV, rei da França, entrou em conflito com o papado, auxiliado pela família Colonna, também desafeto do papa Bonifácio VIII. Ambos se juntaram e sequestraram o papa, que mesmo liberto, veio a morrer logo depois. A partir daí, é eleito um papa francês, transfere-se a sede papal para Avinhon, e segue uma linha de vários papas franceses, de linha geral ligados aos reis da França. Mas não era só isso. Em 1327 a Europa entrava em convulsão por causa da coroa imperial do sacro império romano germânico. Luís IV da Baviera e Frederico da Áustria brigavam pelo trono. Nesta convulsão, surge Marsílio de Pádua, com seu Defensor Pacis, se pondo ao lado do imperador Luis IV, coroado imperador mesmo sem aval do papa João XXII. Estava dado o início à separação entre a Teologia e o Direito no Ocidente, atingindo inclusive o direito canônico.

Referências Bibliográficas:

1)Assis, Ricardo Fontes dos Santos de. A cristandade e o reino francês: Duas facetas do poder Régio(1372-1404) Franca: UNESP, 2008. Dissertação – Mestrado – História – Faculdade de História, Direito e Serviço Social – UNESP
2)SOUZA, José Antonio de C. R. de. A composição e a organização da sociedade civil segundo Marsílio de Pádua.
3)GARCIA, Talita Cristina. A paz como finalidade de poder civil: O Defensor pacis de Marsílio de Pádua. Dissertação de Mestrado apresentado no programa de pós graduação da USP. Orientadora: Ana Paula Tavares Magalhães. São Paulo, 2008.