Há algum tempo foi-me interrogado sobre a existência, ou não, do chamado 'período interbiblico', nos tais 400 anos que Deus teria ficado em "silêncio" por não falar a nenhum profeta. Tem até alguns que,em suas inocencias bucólicas, referem-se às páginas em branco, entre o AT e o NT, como sendo revelativo sobre esse período.
Nunca houve,nem haverá na História, um momento de silêncio de Deus. Essa crença veio derivada do protestantismo dispensacionalista, em que fala de uma possível 'retirada' do Espírito Santo da terra. Essa é a parte onde a cronologia bíblica e a escatologia se misturam. Como se fosse possível retirar alguém onipresente de algum lugar.
A confusão se fez por causa dos chamados "livros apócrifos" do AT, em que a Igreja Romana aproveitou alguns, e as igrejas ortodoxas aproveitaram outros mais ainda. O problema é que a aceitação ou rejeição de livros do AT é uma coisa que cabe aos judeus,não a Igreja. Mas as igrejas romana e grega meteram-se em território desconhecido pra elas. O Canon judaico do AT rejeitou-os, não por inspiração, como pensam muitos. Mas pelo idioma. Esses livros nunca foram escritos em hebraico. Foram escritos direto em grego no período helênico. O termo apócrifo significa escondido. E assim foi o seu cenário. O mundo helênico seduziu muitos judeus, como os saduceus. Esses livros receberam o seu "xeque-mate" no concílio judaico de Jamnia, em 90 d.C., onde foi usado o termo "deuterocanonicos"(fora do canon). A Igreja decidiu no Concílio de Roma(382 AD) que esses livros poderiam ser úteis. O problema foi na quantidade. Muitos que os ortodoxos aceitavam, como "Oração de Manassés", os católicos rejeitaram. No concílio de Trento(1546) a Igreja Romana rejeitou muitos deles, e chamou-os de apócrifos. O importante é salientar que os livros do AT são um assunto de judeus, não de cristãos.
Mas o que são livros apócrifos? São livros escritos de forma escondida. Não é sinônimo de "livro falso". Livro falso,na idade antiga, remete à idéia de 'autoria falsa',não de 'história falsa'. Muitas coisas eram diferentes na Idade Antiga,em relação aos dias atuais. Uma delas é a nossa ideia de "Cânon". Imaginamos um grupo de judeus(ou bispos)civilizados sentados numa mesa redonda,pedindo orientação a Deus sobre quais livros escolher. Isso nunca existiu! E o contexto do AT é mais animador que o NT,pois o AT teve um cânon,mas o NT não. Esse é um dos maiores problemas que a Igreja possui. O único órgão formador de biblia até hoje chama-se Israel. O Canon do AT pode ter sido por duas vias: A reunião com Esdras ainda no período persa; ou o Concílio Judaico de Jamnia em 90 d. C. Foi neste último que os deuterocanonicos(apócrifos do AT) realmente saíram. O motivo? O idioma.
No início do século III a.C. houve uma reunião de judeus no Egito, no reinado de Ptolomeu II, que resolveu traduzir a biblia inteira para o grego. Isso ficou conhecido como a "Versão dos Setenta", pois eram setenta judeus. Mas houve alguns que não precisaram ser traduzidos, pois sempre estiveram em grego. Estes livros, como Tobias, Baruc ou Judite, sempre foram colocados sob suspeita, por serem acusados de serem falsos. Porém muitos não seriam apócrifos, mas pseudoepigrafos, como o livro de Enoque I, o etíope.
Há um critério hoje que não havia na antiguidade ou na idade média. Seria aquilo que hoje chamamos de 'direito autoral'. Então muitas pessoas boas escreviam em nome de autores famosos. Acredita-se ser esse o caso da 'Odisséia' de Homero. E também de muitos livros biblicos. Livros como Enoque I, o etiope. Ou Enoque II, o eslavo. Este último sendo escrito já no periodo de Carlos Magno, no século VIII. O livro de Enoque I, por exemplo, conta a lenda grega de gigantes filhos de anjos com mulheres, que muitos cristãos pensam estar na bíblia.
Todos os deuterocanonicos(ou apócrifos), sendo aceitos pelas igrejas romanas e gregas ou não, nunca passaram pelo hebraico. Só foram escritos direto em grego. Tanto Macabeus(I e II) como Enoque I. No caso do NT, a primeira pessoa a propor um Canon foi um herege: Marcion(85-160)! Ele foi o primeiro a juntar os livros, e até de uma maneira grosseira. A partir dele nasceu a ideia de CANON CRISTÃO, que não existia. No Concílio de Niceia(325) tentaram algo, mas não deu certo. Até que, em 367 o Bispo Atanasio formulou a CARTA DE PÁSCOA, um documento que reunia, pela primeira vez, os 27 livros do NT. Mas o Canon implicaria uma reunião, não uma 'canetada' de um Bispo. Houve os Concilios de Cartago III(397) e até o Concilio de Hipona(393), conhecido como 'sínodo de Hipona Regia', também atribuido o canon. Mas a Carta de Atanasio não encontrou fechamento geral. Tanto que muitas ortodoxas não aceitaram tal carta. A fixação de Lutero nos 39 livros(ele deixou as outras partes, somente recomendou reservas pra elas) foi por causa da amizade entre protestantes e judeus, já que católicos tinham estes como inimigos, pois ninguém confiava nos ortodoxos, fossem católicos ou protestantes. Os ortodoxos eram chamados de "amigos de muçulmanos". Quem, de fato, retirou os deuterocanônicos, foram os calvinistas ingleses. A versão do rei Jaime foi a primeira sem eles. Eles ficaram receosos da população simplória misturar tudo, quando fosse ler a biblia. Mas é sempre importante ressaltar que não existe "biblia catolica", "biblia ortodoxa" ou "biblia protestante". Existe sim, 'AT catolico', AT ortodoxo' e 'AT protestante'. No NT ninguém mexeu. Há uma unanimidade geral, onde todos concordam. Mas essa unanimidade nunca foi dado um ato oficial. Traduzindo tudo em miúdos: O nosso Cânon,dos 27 livros do NT, nunca existiu!
Que tema interessante, Gustavo! Muito esclarecedor... 👏🙏
ResponderExcluirBoa noite Daiane! Obrigado pela visita. Mas é isso mesmo. Obviamente, eu não posso dizer isso em estudos bíblicos que dou, pois nem tudo pode ser absorvido. Aproveite pra descer para páginas anteriores do blog. Há muito mais coisa, que muita gente nem imagina...
ExcluirBjos