Estamos em pleno século XIV. Época de três coisas que abalaram a Europa e também a cristandade: O cativeiro de Avinhon, a disputa imperial entre Luis da Baviera(mais tarde imperador Luis IV do sacro império) e Frederico da Áustria e a peste negra, que foi o maior desastre biológico na história da humanidade. Era de se esperar que essas confusões haveriam de balançar a fé dos cristãos medievais.
Dominados pelo raciocínio da escolástica como os europeus estavam, sob as sombras de escritos como 'A Suma Teológica' de Tomás de Aquino(1225-1274) ou até sob o misticismo de John Scotus(810-877), monge místico irlandês que foi colaborador do espalhar da heresia mariana no ocidente, os europeus viam os escritos de Marsílio de Pádua(1275-1342) com desconfiança. Escritos como 'defensor pacis'(defensor da paz), em que separa completamente a teologia do direito, foram vistos como apostasia.
Dentro do sistema proposto por Marsílio de Pádua, o Papa não poderia intervir no Império e o príncipe estaria assim totalmente livre da ameaça de excomunhão por parte do Papa. A legitimidade do poder daquele que deve governar, e mesmo a autoridade daquele que deve interceder pelas almas, está agora nas mãos da universalidade dos cidadãos, o legislador humano fiel. O clero está então reduzido a funções rituais. Caberá a ele a cerimônia, as celebrações dos ofícios, a pregação, a advertência dos pecadores, e poderá ser consultado pelo príncipe quando estiver em jogo a saúde espiritual do povo. Segundo Marsílio, "os príncipes, agindo conforme as leis, a força e a autoridade, que lhe foi confiada, deverão precisar os demais grupos sociais ou ofícios da cidade, a partir da matéria conveniente, quer dizer, as pessoas dotadas com essas ou aquelas aptidões ou hábitos específicos para exercê-los".
Marsílio de Pádua argumentava ainda que, quando Jesus falou aos discípulos que, por amor da verdade, eles seriam conduzidos à presença dos reis, não estava o Cristo falando que deveriam eles governar; pois o próprio Jesus não governou e ainda disse a seus discípulos que estes de modo nenhum podem ser maiores que o seu mestre. Portanto, se Cristo não governou, os apóstolos também não podem governar no âmbito civil. Isto combina com a fé dos anabatistas, como Thomas Muntzer(1489-1525) ou Félix Manz(1498-1527), que seguiam as ideias de Marsílio mesmo sem o saberem.
As confusões geradas por isso foram tanto religiosas, como civis. O papa João XXII, antigo cardeal Jacques de Cahors, que assumiu o trono pontifício com 72 anos, acobertado pelo rei Felipe V da França, não via nem Marsílio, nem os 'Fraticelli'(franciscanos a favor da pobreza incondicional)com bons olhos. E a disputa pelo trono do Sacro Império Romano(que segundo Voltaire não era nem sacro, nem império,nem romano) viria a piorar as coisas. Mas o que estava acontecendo na Germânia imperial naquela época?
O papa João XXII acreditava, assim como seu estúpido antecessor Bonifácio VIII, que o papa tinha exclusivo direito de investidura sobre os príncipes cristãos. Ora, aconteceu que 1314 foi eleito imperador, pela maioria dos alemães(na verdade eram os nobres que elegiam), Luís da Baviera. Uma minoria, porém tinha escolhido a Frederico da Áustria. Ambos os eleitos pediram o reconhecimento do papa, mas João XXII se mostrou neutro. Luís IV assume o trono em 1314 e começa a combater Frederico numa luta interna. Em 1322 ele vence o opositor e se torna único Senhor da Alemanha, depois de prender Frederico. Mesmo assim o papa João XXII não quis reconhecê-lo como Imperador da Alemanha, alegando que em caso de eleição dividida cabia ao pontífice decidir e não ele decidi-la pelo uso da força. A crise aumentou por causa da administração da Itália: esta, em caso de vacância do trono imperial da Alemanha, deveria ser administrada pela Santa Sé. João XXII fez uso deste direito enquanto durava a luta na Alemanha confiando ao rei Roberto de Nápoles, a administração italiana. Luís IV não quis tolerar este estado de coisas, nomeando em 1323 o Conde Bertoldo Neiffer como seu representante na Itália. O Papa João XXII então intimou-o, sob pena de excomunhão, a depor o conde dentro de três meses e esperar que a Santa Sé decidisse a questão da legitimidade. O Imperador Luís IV alegou que o papa não tinha o direito de se intrometer em questões internas da Alemanha e depois de acusá-lo de favorecer hereges apelou para a convocação de um Concílio Ecumênico a fim de julgar o caso. Acontece que um papa não pode ser julgado por um Concílio, mas a ideia de se convocar um Concílio acima do papa começaria a ganhar força a partir de então. Como consequência, o papa João XXII excomungou o Imperador Luís IV em 23 de março de 1324. Este reagiu com um libelo onde acusava o papa de herege e perturbador da ordem pública. Novamente voltou a pedir um Concílio Ecumênico para julgar João XXII. Dessa forma entrou em curso o último grande conflito entre o Papado e o Império ( Sacro Império Romano Germânico ) na Idade Média.
O imperador Luis da Baviera teve êxito em sua disputa, até vários anos mais tarde, quando entraria em conflito com Carlos da Morávia, que assumiria o trono imperial como Carlos IV. Mas a disputa contra o papa, que colocava o religioso acima do secular, estava vencida. Mas por que isso ocorreu? É aí que entra Marsílio de Pádua, onde foi reitor da Universidade de Paris entre dezembro de 1312 e março de 1313, não mais poderia continuar por lá. Marsilio tomou partido do imperador, tendo que fugir da França, para ficar sob a proteção do imperador Luis IV. Porém os próprios imperadores da Alemanha, reis da França e da Inglaterra não mais dariam razão ao clero de forma incondicional. Além disso, imperícia política, aliada a falta de recursos do imperador para manter o exército, os saques, somados às tropas enviadas contra ele por João XXII, fizeram com que os romanos se revoltassem e o imperador tivesse que recuar para o norte da Itália e, por fim, voltar para Munique. Sendo assim, Marsílio, acompanhou o imperador na fuga para o norte. Porém a batalha entre o clérico e o secular estava selada. Cerca de trinta anos após sua morte, haveria uma cisma papal em que coexistiriam três papas. Foi preciso o Concilio de Constança(1415) para acabar com isso. Todos esses passos abriram as portas para a Reforma Protestante, assim como o secularismo europeu, sob a bandeira pacifista de Hugo Grotius, após a Guerra dos Trinta Anos(1618-1648). Por isso que sempre digo que resistir a isso é 'dar socos em pontas de facas'.
A idade média e o teocentrismo para governos civis estavam acabando. Seu xeque mate seria dado na Revolução Francesa em fins do século XVIII e a filosofia de Friedrich Nietzsche(1844-1900). Infelizmente, muitas coisas inocentes também pagaram o pato com isso. Mas esta foi a colheita de uma igreja teimosa, que defende para si o que não lhe compete. Nosso universo de ser cristão ultrapassa muitas vezes tudo isso. A paz de Cristo a todos!
"Mas a nossa pátria está nos céus, de onde também esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo,que transformará o nosso corpo abatido, para ser conforme o seu corpo glorioso, segundo o seu eficaz poder de sujeitar também a si todas as coisas." Filipenses 3:20,21
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