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terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Um príncipe nos mares. O senhor dos escravos...

"Hoje em meu sangue a América se nutre.
--- Condor, que transformara-se em abutre,
Ave da escravidão.
Ela juntou-se às mais...irmã traidora!
Qual de José os vis irmãos, outrora,
Venderam seu irmão!

Basta, Senhor! De teu potente braço
Role através dos astros e do espaço
Perdão p'ra os crimes meus!
Há dous mil anos eu soluço um grito…
Escuta o brado meu lá no infinito,
Meu Deus! Senhor, meu Deus!!"

Castro Alves, Vozes d'África. Os escravos.

"As armas e os barões assinalados,
Que da ocidental praia lusitana,
Por mares nunca dantes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
E em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas
Daqueles reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e Ásia andaram devastando;
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando
--- Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte."

Camões, Os Lusíadas. Canto I

O que tem em comum entre os lamentos do poeta baiano do século XIX, e os cantos heróicos do poeta português do século XVI? O nascimento do capitalismo comercial, dos grandes mares do mundo. E também de seu filho mais sofrido: A escravidão dos povos africanos! E neste texto é tratado de seu primeiro gerador e o contexto histórico que o envolve: D. Henrique, o príncipe de Portugal, e patrono das expedições portuguesas nas viagens marítimas pela costa africana.

Para esclarecer: Sempre houve escravidão no mundo, seja por guerras ou dívidas. Houve até escravidão de europeus da península ibérica, por povos africanos islâmicos. Mas nenhuma escravidão de povos foi similar à escravidão negra, pois esta tinha a ver com o lucro do nascente capitalismo. E isso era uma novidade no século XV. Ao menos, de maneira plena.

E esse começo não seria possível sem a ousadia de um homem: Dom Henrique de Avis, 1° Duque de Viseu. Título este criado por seu pai, o rei D. João I, de Portugal. Nós o conhecemos como infante D. Henrique, patrono da lendária Escola de Sagres, que seria uma espécie de escola de navegação portuguesa(de existência provavelmente lendária), que preparou navegantes portugueses que partissem para a conquista da África, Ásia e, mais tarde, América. Um homem de visão, mas que muitas vezes se tornou um mercantilista mercenário, que também tinha um ideário medieval sobre as cruzadas, uma ideia de guerra santa contra os norte-africanos islâmicos, para conduzi-los à bandeira da fé cristã. Por isso fez a conquista de Ceuta, em 1415, tomar ares de uma cruzada. Assim como chegou a ser ordenado para a Ordem de Cristo portuguesa em 1420, fazendo esse ano seis séculos de sua ordenação.

A escravidão moderna teve um novo começo, bem diferente da antiga e a medieval que a precederam. Começou na manhã de 8 de agosto de 1444, quando um carregamento de 235 africanos desembarcou no porto de Lagos, em Portugal. Foram trazidos daquilo que hoje é o Senegal, em porões insalubres dos navios portugueses. Um rudimentar mercado escravista foi improvisado nas docas, separando os negros por sexo, idade ou estado de saúde. Assim, pais e filhos, maridos e esposas, foram separados.

O infante D. Henrique, como patrocinador da viagem, se manteve impassível. Pegou o que era seu por direito, a quinta parte, ou seja, 46 escravos. Seguiu em seu cavalo, aclamado pelo povo português. Estes escravos serviram em Portugal, mas os próximos iriam longe, para América, para suprir o potencial humano necessário a uma unidade socioeconômica específica, a Fazenda. Unidade esta que fora desconhecida no velho mundo. O tráfico de ouro negro havia começado.

O espírito cruzado de D. Henrique justificava a escravidão de povos negros, principalmente islâmicos, dizendo que, ao comprar escravos de povos islâmicos, ele os estava privando de material humano, então logo uma cruzada portuguesa contra os infiéis iria se abrir.

E, de fato, Portugal iria tentar abrir futuras cruzadas no continente africano. Como, no início do século XV, Portugal era uma das nações mais pobres da Europa, viu na conquista africana uma otima oportunidade de enriquecer e cumprir os "desígnios de Deus" nas aventuras em terras até então desconhecidas.

Porém a primeira tentativa de encontrar ouro no interior da África foi frustrada para D. Henrique. Ao procurar manter contato com o lendário Preste João(uma espécie de rei lendário, de um reino que parecia um reino cristão copta da Etiópia), que poderia lhe auxiliar contra os reinos islâmicos, pois este rei(dizia a lenda) teria posse de muito ouro, não deu certo. Henrique teve que empreender sua cavalaria contra tribos do senegambia, onde foram atingidos por dardos envenenados, e moscas tsé-tsés aniquilaram-lhes os cavalos. Então, em 1448, Henrique deu ordem para que suas tropas não atacassem, salvo em defesa própria. Costuma-se esquecer que o 1° embate entre uma tribo africana e uma potência europeia, estes últimos foram completamente aniquilados.

O infante D. Henrique cresceu em um país que tinha uma rara obstinação em se manter independente. Tudo começou com o conde de Portucale, Henrique de Borgonha(1066-1112). Este era o 4° filho do Duque da Borgonha, sendo também herói da batalha de Toledo(1085) e futuro genro do rei Afonso VI de Leão e Castela, casando com D. Teresa, filha bastarda do rei. Quando Henrique morreu, em 1112, era muito pouco provável que um dia seu condado se tornasse um reino.

Mas este conde teria D. Afonso Henriques(1109? - 1185) como filho. Este príncipe separaria o condado portocalense do Reino de Leão, gerando o reino de Portugal, após a batalha de S. Mamede, em 1128, contra a própria mãe, que era castelhana, além de vencer os mouros na Batalha de Ouriques, em 1139, travada em local desconhecido até hoje. O reconhecimento da independência de Portugal só veio em 1179, mediante a bula Manifestis probatum, pelo papa Alexandre III.

Depois, já no fim do século XIV, ocorreu outro fato inesperado. Com a morte do infeliz rei D. Fernando, em 1383, sendo sua única filha D. Beatriz casada com o rei D. João I de Castela, e sua viúva D. Leonor Teles adepta da causa castelhana para o trono português, a ruptura da dinastia de Borgonha parecia certa. Burgueses apoiaram o meio irmão do rei, D. João, que era mestre da Ordem de Avis, ao trono de Portugal. A decisão veio na Batalha de Aljubarrota em 1385, com a vitória dos portugueses.

Assim nascia a dinastia de Avis, que duraria cerca de 200 anos, até o final do século XVI. E foi o nascimento do esplendor de Portugal. Com personagens como o infante D. Henrique, e também navegadores como Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Diogo Cão e Gaspar de Lemos.

Toda essa glória de navegação, incluindo as empreitadas de D. Henrique, começou com a Ordem de Cristo, para a qual o infante foi ordenado em 1420, agora completando 600 anos. A Ordem de Cristo foi criada após a extinção da Ordem dos Cavaleiros Templários no Concílio de Viena, presidido pelo papa Clemente V, em 1311.

Após a extinção da Ordem, o papa pressiona o rei D. Dinis, de Portugal, a cumprir a extinção em seu país. O rei português nega. Ao invés disso, firma um acordo com o Fernando IV, rei de Castela, para que ambos protejam as posses templárias em seus respectivos reinos.

Os procuradores portugueses apresentaram ao papa João XXII a proposta de fundar, no castelo de Algarve, uma nova ordem monástico militar. O papa consentiu. Pouco depois, a Ordem do Templo transferiu-se para Tomar. O papa denominou-a Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo, tendo Gil Marques ocupado a posição de Grão-mestre. Assim, D. Dinis resolvia o problema do controle sobre a Ordem do Templo. A Ordem de Cristo recebeu da coroa portuguesa todos os bens da Ordem do Templo, a vila de Castro Marim, e a maior parte dos ex-freires do Templo.

Assim se deu a nacionalização portuguesa dos bens da Ordem do Templo. E isto foi usado na afirmação portuguesa em sua identidade nacional. Quando as galeras portuguesas cruzaram os mares, desbravando a costa africana, como descreveu Luís Vaz de Camões, traziam estampada a antiga cruz templária, agora símbolo da Ordem de Cristo.

O apelido de Henrique, o Navegador, não existiria no período de vida de Henrique, mas foi criado por dois historiadores alemães do século XIX, Heinrich Schaefer e Gustave de Veer. Isso se deve, sem dúvida, ao desempenho de suas aventuras nos mares. Sua conquista de Ceuta, auxiliado por D. Pedro de Meneses, se destacou por suas conquistas além mar.

Este príncipe valente, que era primo do rei Henrique V, da Inglaterra(o herói da batalha de Agincourt), trouxe grandes glórias à memória do reino. Ficou do lado de seu sobrinho Afonso, contra seu irmão e tutor do príncipe, príncipe D. Pedro. Mostrou ao reino a grande vantagem de desbravar os mares.

Porém o príncipe também deixou desastres, como o legado da escravidão negra internacional, além de derrotas na Batalha de Tanger em 1437, em que ele insistiu muito em ir, pois alegava divisão no reino marroquino. O conselho de nobres do rei D. Duarte(irmão mais velho de Henrique, que agora ocupava o trono) foi contra, mas ele estava irredutível. Ainda obteve um "aval de guerra santa" do papa Eugênio IV, naquela época metido em concílios católicos belicosos, que procuravam livrar a Europa dos turcos. Henrique foi para batalha no norte da África, mas algo deu errado. A campanha revelou-se um desastre e, para evitar a chacina total dos portugueses, estabeleceu-se uma rendição pela qual as forças portuguesas se retiram, deixando o infante D. Fernando(irmão caçula de Henrique) como penhor da devolução de Ceuta (conquistada pelos portugueses em 1415). No entanto, o infante parece ter pressentido o seu destino, pois ao despedir-se do seu irmão D. Henrique, lhe teria dito "Rogai por mim a El-Rei, que é a última vez que nos veremos!" Fernando morreria na prisão marroquina em 1443. Isso desprestigiou um pouco D. Henrique, mas não retirou o cerne da sua glória lusitana.

Seu legado foram as conquistas de Açores, Madeira e Cabo Verde, além do contorno do Cabo Bojador por Gil Eanes, em 1434. Sua transformação para Portugal foi impressionante. Sua sepultura está no mosteiro da Batalha, que foi erguido como gratidão por agradecimento pelos portugueses terem ganho a batalha de Aljubarrota dos castelhanos. E realmente a vida desse príncipe foi uma vitória. Ele não era o mais velho dos filhos. Não foi feito para ser rei, mas para desbravar os mares, e encher de glórias as páginas dos Lusíadas de Luís Vaz de Camões, para os cantos das navegações da era de ouro lusitana, a dinastia de Avis. Como bem disse o poeta português:

"Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!"

Fernando Pessoa

Referências bibliográficas:

1)Os grandes da história: Infante D. Henrique. Editora Verbo: Lisboa/São Paulo. Diretor: Enzo Orlandi. Texto: Elaine Sanceau. 1976.

2)Costa, Ricardo da. A Ordem de Cristo, sucessora dos templários. Revista História Viva. Ano V. n° 59. Editora Duetto. 2014.

3)Michelin, Kátia Brasilino. O Atlântico começa em Ceuta. Revista História da Biblioteca Nacional. Ano X. n°119. Editora: Sociedade Amigos da Biblioteca Nacional. 2015

4)Pagden, Anthony. POVOS E IMPÉRIOS: Uma história de migrações e conquistas, da Grécia até a atualidade. Coleção: História Essencial. Tradutora: Marta Miranda O'Shea. Editora Objetiva. 2002.

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